postado em 10/03/2013 08:00
Quando um homem mata a mulher/namorada/ex-companheira, é comum ouvir nos relatos dos parentes que eles nunca imaginaram que isso pudesse acontecer, que foi uma surpresa. Até que um vizinho resolve falar: "Tinha muita gritaria à noite. Volta e meia, acordávamos assustados". Nos registros da polícia, alguns boletins de ocorrência descrevem ameaças, injúrias e difamações, mas a denunciante nunca aceitou as medidas protetoras. Não quis ser encaminhada para um abrigo. Avaliou que não corria risco de morte. As ameaças eram vazias. Só foi à delegacia para assustá-lo.Logo depois, uma amiga mais próxima conta que ele a obrigava a manter relações sexuais mesmo sem a sua vontade. Ela sentia que era o seu dever como mulher. Aí, descobrem que ele já tinha rasgado as suas roupas e quebrado o seu computador quando estava mais nervoso. Tinha ciúmes além do normal. Ele a seguia no trabalho, ligava diversas vezes por dia e envolvia amigos, parentes e familiares nas brigas do casal. "Mas isso é coisa de homem apaixonado. Ele nunca encostou um dedo nela", diziam.
Os sinais estavam ali. Só que ninguém somou os acontecimentos. A mulher nunca quis relatá-los com detalhes para ninguém. Uma ou outra pessoa sabia alguma coisa, mas não muito a fundo. A vítima ficava constrangida de contar a violência psicológica e moral que sofria e também queria protegê-lo. Pois, como se costuma ouvir: "Nos momentos em que ele não estava agressivo, era bastante carinhoso. Além disso, nunca tinha batido nela. Um tapa ou um empurrão eventualmente, mas nada muito grave ou que tirasse sangue. Ele não a cortou com faca ou tentou sufocá-la com o fio de telefone. Isso é coisa que só aparece no jornal".
Na percepção da mulher, o companheiro pode até parecer inofensivo, justificar que foi o calor da emoção, mas esse tipo de comportamento é um sinal claro de que essa história de amor pode acabar em tragédia. Os relatos estão aí estampados nas capas dos jornais. Na semana em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher, vimos uma jovem ser esfaqueada dentro de um shopping pelo ex-marido, uma outra ser enforcada por um fio de telefone pelo companheiro, e também acompanhamos, passo a passo, o julgamento do goleiro Bruno.
Em 70,19% dos casos da violência doméstica contra a mulher, o agressor é o companheiro ou o cônjuge da vítima. Acrescentando os demais vínculos afetivos (ex-marido, namorado e ex-namorado), esse dado sobe para 89,17%. No Brasil, uma mulher é agredida a cada cinco minutos e, quase sempre, o crime acontece dentro da própria residência do casal.
Segundo estatísticas da Polícia Civil do Distrito Federal, um homem com características possessivas e violentas em até cinco anos está agredindo fisicamente a mulher. Outro dado alarmante: se em até um ano após o fim do relacionamento ele continuar perseguindo, ameaçando e procurando a ex-companheira de forma inadequada, o risco de ela ser assassinada cresce exponencialmente. Isso não é comportamento de homem apaixonado. É coisa de gente perigosa. São os sinais claros de um potencial assassino.
É importante entender que ele não se tornou violento do dia para a noite. Desde o início da relação, apresentou comportamentos possessivos e enxergava a mulher como sua propriedade, e não como companheira. Ele começou dizendo quais roupas ela podia e não podia usar, quais comportamentos desaprovava e quais amizades queria que ela mantivesse. Depois, partiu para violência psicológica para diminuir a sua autoestima (chamá-la de burra, gorda e feia). Até que passou a agredi-la moralmente (vadia, puta, sem vergonha).
Nesse momento, o relacionamento deixa de ser apenas complicado para se tornar um caso de polícia. "Terminar um relacionamento violento é o único jeito de acabar com esse tipo de abuso. Mas é nesse processo de terminar que a maioria das mulheres é morta", escreve Gavin de Becker em seu livro The gift of fear (sem versão brasileira). De acordo com estudos da violência doméstica, a maioria dos crimes não acontece no calor de uma briga. O homem que mata, normalmente, toma a decisão de matar. O assassino planeja, persegue e ameaça a vítima.
Ele pode ser "provocado" porque ela resolveu terminar a relação e ele não aceita. Ou após um longo período depois o fim do relacionamento, ele volta a procurá-la porque descobriu que ela arrumou um namorado novo. "O crime doméstico é o mais fácil de se prever. É um ciclo, que vai ficando cada vez mais violento. Mas, mesmo assim, as pessoas custam a acreditar que ele pode acontecer", finaliza Gavin. Afinal, quem entende como um homem pode matar a própria mulher? Mas, acredite, esse crime tem um padrão, personagens fixos, um ciclo e até uma solução.
1; ATO
Quem bate e quem apanha
Cada história de violência doméstica tem um enredo diferente. Nenhum casal é igual ao outro. Alguns têm filhos, outros não. Às vezes, são anos de relacionamento ou apenas poucos meses. Nenhum sofrimento é parecido com o outro. Há registros de mulheres que foram assassinadas pelos companheiros sem ter apanhado uma única vez. Assim como têm casais com dezenas de boletins de ocorrências de agressão na delegacia que conseguiram se separar sem olhar para trás.
Eles podem ser ricos ou pobres. Velhos ou novos. Aparentemente, não há um padrão. Mas é possível encontrar um fio em comum: em quase todos os casos, o casal tem a mesma formação cultural. Famílias com estruturas patriarcais imersas em um universo machista, em que o homem é o protetor, e a mulher, um ser frágil que deve ser protegido. E, provavelmente, frutos de um lar com violência doméstica.
"Mulheres que são filhas de famílias destrutivas tendem a se relacionar com homens agressivos. A combinação entre um casal que foi educado dessa maneira pode ser explosiva, pois os padrões se repetem: ele bate e ela se anula. E se essa violência não for interrompida, provavelmente será passada para os filhos deles", avalia Maria da Conceição Krause, psiquiatra da Polícia Civil do DF e professora da Academia de Polícia da corporação.
Ela explica que tanto o homem quanto a mulher têm a mesma insegurança: o medo de serem abandonados. Esse sentimento, que é natural na infância, desaparece quando vamos amadurecendo. Isso não ocorre com os casais doentios. O adulto dependente e inseguro manterá o antigo padrão. "É o mesmo sentimento de desamparo de uma criança. Mas é preciso entender que essa não é uma dor pequena ; é uma dor imensa", explica Maria da Conceição.
Cada um, porém, reage de uma maneira a essa circunstância. As mulheres, normalmente, são pessoas doces, que tentam agradar todos a sua volta. Anulam-se, adaptam-se e ajustam-se ao sentimento do outro. Além disso, associam o abandono ao seu comportamento. Costumam pensar: "Se eu fizer assim ou assado, ele nunca vai embora". Já eles aparecem na forma de um homem machão. Um sujeito com opiniões fortes, pouco emocional e que aparenta ser seguro de si ; mas a autoestima cai toda vez que não se sente no controle. E, sem a autoestima, morre de medo que ela vá embora.
É a mistura perfeita: um homem aparentemente protetor para uma mulher extremamente frágil. Ela busca uma pessoa que a faça se sentir segura. Ele engana que tem poder. Mas, na verdade, o agressor precisa de alguém vulnerável para alimentar a sua baixa autoestima. Alguém que ele possa dominar e, assim, se sentir forte, no poder e no controle. Ao mesmo tempo, porém, a necessidade de ter a companheira é tanta que, à medida que ela procura qualquer situação de independência (estudar, por exemplo), ele surta.
Esse homem sustenta a autoestima em cima de uma mulher que não se move, não evolui. Só assim ele descansa o seu temor. "Só que ninguém suporta uma relação petrificada dessa. Naturalmente vem um desgaste", acredita Maria da Conceição. Por que esse crescimento da mulher causa tanta raiva nesses homens? Porque o inconsciente deles ainda guarda a marca da humilhação sofrida na infância. Essa sensação se extravasa por meio de raiva e ódio. Acontece o mesmo com a mulher. Ela teme tanto ser abandonada que esquece ser adulta e responsável por seus atos.
O motivo da violência está ligado a um valor infantil que nunca amadureceu. Algumas pessoas vão procurar ajuda psicológica para controlar esse sentimento desesperado; outras, simplesmente, procuram cessá-lo. E, às vezes, a única maneira de amenizar a dor é acabar com a sua causa. Quando o homem chega a essa conclusão, é bem provável que um assassinato ocorra.
Leia a matéria completa na edição n; 408 da Revista do Correio.