postado em 02/06/2013 08:00
Dos clichês que cercam o mundo dos backstages de desfiles e eventos de moda, é provável que Kátia Ferreira não se encaixe em nenhum. Não penteia os cabelos de modo exótico, não se veste com grifes dos pés à cabeça, não se cerca de uma horda de assistentes nem dá ordens com um bater de palmas. Tampouco costuma ser fotografada em festas de figurinhas das primeiras filas de desfiles. A estilista à frente da Apoena ; um pouco grife, um pouco instituição social, que passou de revelação da moda nacional a fabricante de brindes de shopping e ressurge agora "das cinzas", como ela mesma brinca ; é mais adepta da calça de elastano, camiseta e rabo de cavalo. Pelo menos em seu ambiente de trabalho, um ateliê na Asa Norte, onde passa a maior parte do dia (o suficiente para os porteiros do prédio indagarem se ela, na verdade, mora ali) entre os bordados que lançaram sua marca à fama.Kátia vem de uma temporada intensa de trabalho exaustivo. Em abril, depois de enfrentar uma dura crise, ficar três anos fora dos holofotes e passar por uma necessária, porém forçada restruturação da marca, a Apoena voltou ao line up do Fashion Rio, em uma parceria com o estúdio de quadrinhos Mauricio de Sousa. Tanto tempo depois, não perdeu o viés social que lhe fez conhecida. Mesmo com tecnologia de ponta ; é hoje proprietária de uma das cinco máquinas de estamparia digital do Brasil ;, a matéria-prima base das peças segue sendo a habilidade ensinada às bordadeiras que sustentam o projeto Proeza, organização não governamental por trás da marca. Algumas são parceiras há mais de 10 anos. Foram elas que deram vida às estampas que coloriram a passarela no desfile que marcou a ressurreição da marca.
Ninguém diria que os vestidos trapézio da personagem poderiam ser material de semana de moda, mas a marca tirou elogios mesmo da crítica mais durona. As peças do desfile ainda estão penduradas nas araras do ateliê, e Kátia as exibe sem disfarçar o orgulho. Refere-se a cada uma delas pelo nome de quem as bordou. "Essa foi a dona Cecília quem fez. Essa aqui é da Cremilda. Aquela outra ali também", vai apontando. Quando Kátia recebeu a reportagem, estava ansiosa para mostrar as peças às suas criadoras. É que as roupas são cortadas no ateliê da Asa Norte, vão para o galpão do projeto para serem bordadas e retornam ao ateliê para a montagem. "As roupas foram daqui para o Rio. Sem internet, elas não conseguiram ver o desfile."
Tirando os bordados e o colorido característicos da marca, a Apoena do verão 2014 lembra apenas vagamente aquela da temporada de 2010, quando fez sua última apresentação no Fashion Rio antes das férias forçadas da semana de moda. As máquinas de costura de última geração permitiram outro tipo de acabamento às peças, mais refinado. Os bordados se juntaram a tecidos nobres, como o gazar de seda, e a marca somou ao portfólio uma linha masculina e a malharia, feita com tecido 100% de bambu. Além disso, a coleção contou com a colaboração do estilista Walter Rodrigues e do stylist Marcelo Hirata, que produziu, em 2006, o desfile para a primeira edição do Capital Fashion Week.
Odisseia não seria exagero para definir o que a marca passou desde suas primeiras três máquinas de costura, doadas pela Unesco em 2001, até a celebrada apresentação no Rio, em abril passado. Kátia não é estilista diplomada. Não tem formação em moda, a não ser a habilidade com a costura adquirida ainda na infância e uma ou outra consultoria de amigos. Mesmo assim, ela colocou, em determinado momento, Brasília no mapa da moda nacional.
Em 2001, a estilista, hoje com 42 anos, trabalhava na Administração de São Sebastião, em um emprego "arranjado por um conhecido", quando teve a ideia de montar uma cooperativa de mulheres e ensiná-las a bordar. Abordou uma representante da Unesco e contou-lhe do seu projeto. "Na hora, ela não pareceu dar muita bola, mas deu abertura para que eu contasse mais do que tinha em mente", lembra Kátia.
Kátia quase não acreditou quando recebeu as máquinas para dar início aos cursos de bordado. Ao contrário do esquema que faz a Apoena funcionar hoje ; no qual depois do aprendizado as bordadeiras passam a trabalhar para a instituição e a receber por produção ;, o curso era curto, com grupos de poucas mulheres. "O projeto nos interessou muito não só pela parte cultural, mas pelo aspecto do empoderamento da mulher. Elas eram donas de casa, muitas vezes sozinhas como chefes de família, que precisavam de um recurso para sustentar os filhos", conta Marlova Jovchelovitch, coordenadora da Unesco no Brasil. "Hoje, a gente percebe que o trabalho da grife transforma vidas."
Algum tempo depois, a gestão de São Sebastião mudou, e Kátia perdeu o antigo emprego. Como o projeto estava a toda, desistiu dos escritórios e decidiu dedicar-se em período integral ao trabalho com os bordados. "Já trabalhei muito com pilhas de papéis na minha frente, mas eu amo gente. Tenho o maior prazer em escutar a vida, a história dessas mulheres. E acho que é por isso que a coisa funciona. Quando a pessoa vê que você se importa com ela, dá o máximo de si. Essas mulheres são invisíveis para a sociedade, mas para nós, ali, não", comenta.
Em 2004, Kátia decidiu ampliar o nicho da cooperativa. De lençóis e colchas bordadas, até então únicos produtos do trabalho da cooperativa, vieram vestidos, batas, saias. Foi atrás da verba para o primeiro desfile. Na época, ainda nem levava o nome Apoena. "O povo ria de descrédito quando eu dizia que ia vender roupa. Diziam: ;Vai vender essas coisas horríveis de artesanato?;." Conseguiu o recurso por meio do Fundo de Apoio Cultural do GDF e batizou a apresentação de Cara Brasiliense. Era a primeira vez que os bordados saíam dos galpões. "As pessoas começaram a me procurar e eu percebi que precisava de um nome para a marca. Dormi e sonhei com uns índios e uma Nossa Senhora de olhos bem grandes. Quando acordei, fui folhear um dicionário indígena. Lá, li que o nome significava ;aquele que enxerga longe;. Batizei a marca." Nascia assim a Apoena.
Os próximos anos da história da marca são aqueles já conhecidos de muitos brasilienses. A marca fez sucesso em lojas da cidade com uma coleção de camisetas de santinhos bordados à mão e, em 2005, foi chamada para expor no Fashion Business, no Rio, na época o principal salão de negócios de moda do país. "A gente mal tinha dinheiro para pagar o estande, imagina decorar. Pegávamos pedaços de madeira e coisas que sobravam dos outros estandes. Comprei umas flores de plástico para enfeitar e montamos um varal para pendurar as peças. Foi um sucesso. Até as flores da decoração o povo queria comprar."
Foram nove edições participando do evento carioca. "A gente chegava sem dinheiro para pagar o aluguel do chão. Eu conversava com a Eloysa (Simão, organizadora do evento) e pedia para pagar ao fim da feira. Levava chaveiro, ecobag, de tudo para vender e pagava depois, com um bolo de cheques dos clientes", ri. Em uma dessas edições, foi abordada por uma jornalista, dona de uma assessoria de imprensa especializada em moda no Rio. "Ela disse que conhecia uma pessoa que se interessaria pelas minhas coisas e me deu um cartão." O telefone era de Beth Filipecki, figurinista do horário nobre da TV Globo, que, na época, andava às voltas com a novela Senhora do Destino. Depois disso, os bordados da marca vestiram ainda atrizes nas tramas América e Belíssima. "Um dia, andando por São Cristóvão, no Rio, vi um vestido nosso copiado no manequim de uma lojinha. Achei o máximo", lembra.
Em 2007, a marca foi convidada a expor no Salão Internacional de Moda de Madri, na Espanha. Saiu de lá o primeiro cliente internacional, da Arábia Saudita. "Era o Mohammed. Eu não entendia uma palavra do que ele falava. Ele apontava o vestido, dizia que queria mais comprido, mais decotado, eu fazia e mandava. Um dia, recebi um e-mail dele me perguntando se eu sabia o que estava fazendo. Foi uma aventura."
No ano seguinte, a marca convenceu a organização do Fashion Rio de que merecia um espaço no line up. Estreou com o desafio de mostrar à crítica de que, apesar de ir na contramão do que o momento da moda pedia ; roupas feitas cada vez mais com apoio de maquinaria high-tech, a despeito do artesanal e do sustentável ;, a Apoena tinha algo a mostrar. A apresentação só foi possível com patrocínio. Colocar-se na passarela de um grande evento envolve arrecadar fundos para pagar da modelo que vai desfilar a sua roupa ao lanche dos jornalistas na sala de imprensa. "Algumas marcas têm uma ajuda de custo do evento. Não era o nosso caso. Minha correria no início era sair atrás de parceiros", lembra.
Renovada e de volta ao mercado
A cooperativa fez quatro apresentações no line up principal do Fashion Rio. O momento parecia bom. Mas, passado o desfile da temporada verão 2010, a Apoena sumiu. Nem mesmo os brasilienses tinham notícias da marca que há até bem pouco tempo figurava nas vitrines das butiques mais luxuosas da cidade. Os boatos que corriam davam conta de que a Apoena não existia mais, tinha sucumbido definitivamente às dificuldades do mercado e encerrado as atividades. Tudo mentira. Kátia, na verdade, enfrentava na Justiça uma enorme peleja em torno do direito de usar o nome com o qual batizou a marca.
Com o destaque no Fashion Rio, a marca chamou a atenção de um lojista no Espírito Santo, proprietário de uma loja de surfwear com o mesmo nome. "Ele deve ter achado que eu era milionária, porque pediu uma quantia absurda pelo nome", conta Kátia. Ela havia entrado com um pedido de registro da marca anos atrás, mas as coisas não correram exatamente como planejado, e a surpresa desagradável foi descobrir isso apenas anos mais tarde, quando a bomba estourou. "Os advogados me desacreditaram, disseram para eu desistir, que ou eu pagava o que ele queria ou não tinha mais o que ser feito", lembra.
Sem o nome, Kátia se afastou do Fashion Rio e das feiras de negócio. "Eu vivia de patrocínio. Sem o direito de usar o nome, ficava difícil conseguir alguma coisa. Fora que eu estaria ainda comprometendo meu patrocinador." Além disso, a cooperativa passava por uma pesada crise financeira, a maior desde sua fundação, e a grande responsável pela restruturação pela qual a grife foi obrigada a passar durante os três anos que se seguiram, enquanto corria o processo pelo uso do nome. Na época, ela tinha quase 50 pontos de venda espalhados pelo Brasil. Pouco depois, esse número foi para quase zero.
Para continuar viva, a Apoena reduziu de tamanho. A quantidade de mulheres atendidas pelo projeto precisou diminuir, e a prioridade passou a ser outra: no lugar dos vestidos bordados de ponta a ponta, brindes de shoppings e bazares com algumas poucas peças para clientes convidadas dentro do próprio ateliê. "Foi a maneira que nós encontramos de fazer o caixa girar para pagar as dívidas e nos mantermos em pé", conta.
A luz no fim do túnel veio em 2010, no auge do furacão. Quando já havia dado a causa por perdida, descobriu, no interior de Minas Gerais, em uma cidadezinha chamada Leopoldina, uma lojinha antiga de roupas de mesmo nome da marca dos bordados. No dia em que pisou na cidade, descobriu que a Apoena mineira estava fechando as portas com algumas dívidas em aberto. Sensibilizada com a causa da xará do cerrado, a dona da loja cedeu o nome a Kátia com a condição de que ela assumisse os seus débitos. Trato feito. No ano passado, a Apoena ganhou do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) o direito de usar o nome pelos próximos 10 anos ; o que não garante que a peleja com o empresário capixaba cesse em definitivo, mas confere um pouco de paz.
A parceria com a turma da baixinha gordinha dos quadrinhos foi a luz que iluminou a Apoena no caminho de volta às passarelas. Veio a calhar tanto para a marca, que precisava de um degrau que a ajudasse a se reerguer do ostracismo, quanto à empresa detentora dos gibis, que viu na parceria a oportunidade de comemorar os 50 anos da personagem em grande estilo, não em camisetas infantis, mas em produtos voltados aos adultos, diante dos flashes de uma semana de moda. Uma horda de pessoas se envolveu na confecção da coleção da reestreia. Walter Rodrigues, por exemplo, que traz consigo a experiência de anos de São Paulo Fashion Week ; evento que abandonou no ano passado para dedicar-se justamente aos bastidores ;, mostrou a Kátia como apostar na parceria sem que o resultado fosse uma coleção boba e infantilizada. As bordadeiras mais dedicadas ficaram até altas horas da madrugada finalizando bordados, e a parceria com o stylist Marcelo Hirata foi retomada. "Ele ficava até as 3h aqui no ateliê colando cristal Swarovski em vestido. Até quentinha comeu", ri Kátia.
Deu certo. A Apoena agora tem fôlego novo e planos de voltar ao mercado e reconquistar a clientela perdida ainda maior do que era pré-crise. O Instituto Proeza, de onde nasceu a Apoena, hoje não só contabiliza mais de 600 bordadeiras, como estendeu os benefícios aos seus filhos ; na época da crise, Kátia inscreveu o projeto no Criança Esperança e passou a oferecer cursos de balé, aulas de reforço, transporte, além de reformar a biblioteca da escola e incrementar a merenda das crianças. "Há coisas boas que vêm com a crise. Hoje a gente atende os filhos das nossas mulheres, passamos por aprendizados importantes, estamos mais fortalecidos como instituição. Conseguimos nos dedicar mais à qualidade do que a gente faz, nos estruturarmos, nos equiparmos. Foi o mal necessário", reflete Kátia.
A evolução impressiona mesmo os parceiros mais antigos da marca, parte do "um milhão de amigos" aos quais Kátia se refere sempre que comemora as conquistas da cooperativa. "No início, era tudo bem manual, os desenhos e transfers, tudo artesanal. Olhando hoje, a evolução da marca é gigantesca. É muito legal ver esse crescimento", lembra a hoje produtora de eventos Patrícia Vaz, estagiária da marca desde os seus primórdios, em 2005, até os tempos de Fashion Rio.
Kátia diz que não acreditava que voltaria ao line up do Fashion Rio. Vencida essa primeira barreira, no entanto, o desafio agora é outro: ficar. Mesmo no bom momento, a empresária sabe que o caminho pelo qual a marca escolheu trilhar ; "justiça seja feita, eu comecei a falar em sustentabilidade quando ninguém ainda se importava", ela reforça ; não é o mais fácil dentro mercado de moda. Produtos artesanais em geral são caros e, embora as portas estejam aos poucos se abrindo para projetos sustentáveis e de cunho social, raramente eles saem na frente na preferência dos consumidores.
"Não acredito mais em preconceito com o trabalho artesanal por parte do mercado", opina o stylist Marcelo Hirata, do último desfile da marca. "A gente sabe que um trabalho artesanal, com mão de obra qualificada, encarece o produto e, por esse motivo, marcas como a Apoena têm maior dificuldade em se posicionar nesse mercado fast fashion que temos hoje no Brasil. A moda renova sua imagem a cada seis meses. Já um trabalho humanitário de moda fica gravado nas vidas das pessoas envolvidas para sempre", avalia. "Por que será que não encontramos marcas como essa em lojas de shopping? Porque ainda temos uma divulgação de moda que segue tendências puramente estéticas, e não éticas", complementa Eloize Navalon, coordenadora do curso de design de moda da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo.
Mesmo assim, ter fé não custa. "Eu nem achava que a gente voltaria. As chances eram muito pequenas. E ainda não sei se é para ficar. Mas o fato é que foi mais fácil para a gente do que as outras edições", comenta Kátia. Além disso, com "um milhão de amigos" fica mais fácil acreditar. "Eu não sei o que essa Apoena tem que as pessoas têm amor por ela e se envolvem muito. Mas o que eu fico feliz é que, mesmo com as dificuldades, a gente dá certo. De algum jeito, a coisa funciona", comemora.