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Dedo-duro digital

A era virtual trouxe consigo grandes facilidades, sobretudo para quem gosta de espionar o parceiro. A bisbilhotagem, no entanto, pode se transformar em crime

Histórias de ciúmes que têm como pano de fundo as redes sociais se alastram com a velocidade da própria internet. Namoradas que vão atrás de mensagens privadas do seu par e namorados que se aborrecem ao ver que a parceira foi marcada em alguma foto ; o vice-versa também é válido ; são algumas das situações cada vez mais comuns na rotina dos relacionamentos. O surgimento dos chamados "detetives virtuais" tem provocado uma onda crescente de invasão de privacidade. E o conhecido ditado "quem procura acha" encontra respaldo nos números.

Segundo dados de uma pesquisa feita no Reino Unido pela empresa Mobile Insurance, publicada este ano, cerca de 40% dos parceiros descobrem que estão sendo traídos "fuxicando" o aparelho celular do companheiro. A segunda maneira mais frequente de se deparar com a pesarosa descoberta é por meio da conta da rede social do parceiro, cuja ocorrência responde por 23% dos casos. O terceiro e último lugar do ranking das formas mais comuns de se confirmar as suspeitas sobre "puladas de cerca" do companheiro é a busca em arquivos no próprio computador, notebook ou tablet do parceiro.

Tanta indiscrição pode ser analisada sob dois aspectos: um deles é o prejuízo aos relacionamentos ; e, nesse caso, quem espiona e quem é espionado podem colher resultados desastrosos ; e o outro é o lucro de quem cria mecanismos para dar vazão ao instinto caçador de um ciumento incorrigível. Um exemplo da segunda situação é o aplicativo conhecido como Rastreador de Namorado, com funções que dão completo acesso ao celular do parceiro. Além de enviar para um celular cadastrado a localização exata do aparelho no qual está instalado, o aplicativo transmite uma cópia de todas as mensagens enviadas e recebidas pelo celular e revela listas de todas as ligações (realizadas, atendidas ou perdidas). O ciumento tem ainda a opção de mandar uma mensagem para a central do aplicativo e o celular espionado automaticamente realiza uma chamada para o aparelho do desconfiado, que passa a receber todo o áudio do ambiente onde outro celular está.

Segundo o desenvolvedor do aplicativo, o paulista Danilo Neves, de 27 anos, a ideia de criar o rastreador veio da necessidade de preencher uma "lacuna social". "As pessoas são muito curiosas, muito desconfiadas. Penso que é assim desde sempre, a tecnologia só auxilia as possibilidades, aprimora a ferramenta investigativa", afirma. Esse comportamento, de acordo com Danilo, não é privilégio dos brasileiros: "A ideia de aplicativo daria certo em qualquer lugar do mundo. Depois de duas semanas do lançamento, além de centenas de downloads do Brasil, temos várias pedidos para outras línguas também."

O aplicativo tem duas versões. A gratuita executa todas as funções descritas, mas é de fácil detecção, já quem mantém o logotipo do aplicativo na página principal do smartphone do usuário. A versão paga custa R$ 4,99 (mensais) e fica invisível no celular do parceiro.

Aos adeptos desse tipo de estratégia, convém um esclarecimento. O advogado Rudolph Menezes adverte que, quando não há consentimento do outro para instalar esse tipo de mecanismo em celulares e/ou computadores ou quando a situação começa a se tornar incômoda, a espionagem virtual passa a ser considerada crime, previsto na chamada Lei Carolina Dieckmann, em referência à atriz que foi vítima de espionagem digital e teve fotos íntimas divulgadas na internet. "Celulares, computadores e contas de e-mail são privativos. Aproveitar-se de uma situação para instalar um aplicativo e invadir conversas privadas é abuso de confiança, fraude, que fere os direitos de privacidade."

Rudolph Menezes acrescenta que, mesmo que a senha do e-mail ou de redes sociais fiquem gravadas no computador do parceiro, ele não pode usar isso para obter informações privadas. "Não importa qual o conteúdo, se tem valor monetário ou político. Se alguém está se aproveitando de uma situação do dia a dia para ter acesso a um computador ou a uma conta para obter informações sem consentimento do proprietário, configura-se crime", encerra.

O gatilho para as brigas
Além das implicações jurídicas, a espionagem virtual pode render problemas conjugais. Silvana (nome fictício), de 35 anos, descobriu que o marido mantinha uma relação extraconjugal acessando as mensagens do celular dele. "Eu estou sempre ligada, sempre fui assim. Tenho o hábito de ficar procurando alguma coisa errada. Em uma dessas vezes, peguei várias mensagens dele com uma mulher, bem explícitas mesmo", admite Silvana. O casal chegou a terminar por alguns meses, mas reatou o relacionamento há um ano. Para ela, é normal bancar a detetive virtual. "Não dá pra dar mole nesse mundo cheio de gente sem-vergonha em que a gente vive. Eu confio nele, de verdade. Não confio e nunca vou confiar é nas outras mulheres", justifica.

Segundo a psicóloga Roberta Paiva, o ciúme é um sentimento normal em qualquer relacionamento, mas, quando ele sai do plano dos pensamentos para ações concretas, torna-se um problema. Para ela, é preciso ficar claro que um relacionamento não representa uma fusão das pessoas, portanto não dá direito à invasão de privacidade. "Independentemente do nível de relação, um não está inserido dentro do outro. A relação é uma união, na qual as pessoas têm pontos em comum", diz ela.

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