Revista

Prova de resistência

Para romper o ciclo de violência a que são submetidas no próprio lar, as mulheres precisam ultrapassar diversas barreiras: medo, vergonha e preconceito. Não raro, perdem a casa e a dignidade. Recomeçar é difícil, mas não impossível

Gláucia Chaves
postado em 01/12/2013 08:00
Para romper o ciclo de violência a que são submetidas no próprio lar, as mulheres precisam ultrapassar diversas barreiras: medo, vergonha e preconceito. Não raro, perdem a casa e a dignidade. Recomeçar é difícil, mas não impossível
O que leva uma mulher que apanha do marido a continuar com ele? Como é possível para uma mãe assistir a seu filho apanhar até quase perder a consciência sem fazer nada? O tema violência doméstica é cheio de tabus e condenações. Inúmeros estudos tentam entender por que vítimas dessa natureza, por vezes, não conseguem sair da condição de agredidas. Um deles, feito pela enfermeira Liliana Maria Labronici, fala sobre resiliência. Na física e na engenharia, o termo refere-se à resistência dos materiais. Seria, grosso modo, a quantidade de trabalho necessária para deformar um corpo até seu limite elástico. Há cerca de três décadas, a noção de resiliência passou a ser foco de estudo de psicólogos, psiquiatras e outros profissionais da saúde. Haverá um limite da violência para o corpo e para a mente humana?

Quando analisada sob a ótica da violência doméstica, especificamente contra a mulher, a resiliência passa a ser uma ferramenta importante para entender como alguém pode se constituir ou reconstituir, de maneira positiva, diante de uma situação adversa, ainda que o ambiente seja desfavorável. Desde 2004, Liliana Labronici, ex-professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, estuda o impacto da violência na saúde da mulher. Em sua mais recente pesquisa, apresentada no XXXI Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro, ela chegou à conclusão de que a capacidade de superação não é inerente ao ser humano. Diante de uma situação de trauma, o sujeito pode ou não se recuperar com facilidade. A boa notícia é que a característica pode ser estimulada.

Ela explica que o conceito já é amplamente usado na oncologia, mas, quando o tema é mulheres que sofrem violência, a literatura ainda é esparsa. ;Não há estudos suficientes, mas já sabemos que a violência é um trauma que deixa marcas além das físicas.; Transtornos psíquicos, por exemplo, são comuns entre as vítimas. Contudo, ela enfatiza que ser resiliente não quer dizer que a pessoa está bem o tempo inteiro. ;É um processo dinâmico, com altos e baixos;, completa.

A tentativa de estimular a resiliência reside, basicamente, na análise do contexto em que a vítima está inserida, como o familiar, o social e o cultural. Uma vez identificado o núcleo mais carente, é feito o trabalho para suprir os elementos ligados às necessidades humanas básicas. Por exemplo: se a violência está afetando a capacidade de a mulher se alimentar ou dormir, trabalha-se primeiro esses problemas. ;Todos esses elementos vão repercutir na saúde dela como um todo;, explica Labronici.

Manter contato com entes queridos, segundo a pesquisadora, é outra estratégia-chave para que um trauma dessa magnitude seja superado. A aproximação, muitas vezes impedida pelo agressor, precisa ser estimulada. O processo de mobilização interna, ela explica, precisa começar o quanto antes. No estudo que fez, Liliana conta que acompanhou cinco mulheres em processo de superação. Assim como ela, a Revista procurou exemplos de ex-mulheres, ex-namoradas ou garotas violentadas (às vezes, sexualmente) pelo pai em situação de risco.

Infâncias roubadas

Os seis primeiros anos de vida, a chamada primeira infância, são cruciais para o desenvolvimento. Esse período é o momento em que devem ser criadas condições para que a pessoa possa se desenvolver física, emocional e psicologicamente. Um ambiente saudável, com amor e atividades estimulantes, é indispensável para que a criança se torne uma adulta com relações sociais satisfatórias, habilidades motoras normais, linguagem bem desenvolvida e capaz de contribuir positivamente para a sociedade.

Sandra, Rita e Luana não tiveram a sorte de nascer em uma família que desse à primeira infância o valor merecido. As três têm histórias de vida parecidas: mãe falecida, pai alcoólatra, falta de condições de estudo, violência física, sexual e psicológica. Ter encarado o lado perverso do ser humano, porém, não é a única coisa que as une. Em comum, há também a tão sonhada resiliência, que, mais cedo ou mais tarde, chegou para todas.

Quando morava com os pais, Sandra não sabia ler nem escrever. Era impedida de estudar. Passou a viver apenas com o pai, que a espancou diversas vezes. Fugiu de casa, mas não encontrou uma sorte melhor nas ruas: além de mais violência, conheceu as drogas e o álcool. Acabou engravidando. Sua filha tinha apenas três dias de nascida quando sua paciência chegou ao fim. ;Olhei para ela, pensei ;estou morando na rua; e procurei um abrigo;, conta. A ideia de que seria uma mãe que não teria o que dividir com a filha quando esta estivesse em idade escolar, a assustou sobremaneira. O momento de se levantar e mudar a situação precária que havia se tornado sua vida havia chegado.

A recepção nos primeiros abrigos que procurou, contudo, não foi muito amigável. ;Muitos viram a cara. Veem uma pessoa de aba reta, bermuda, e já a excluem da sociedade. Isso é chato, você ser uma pessoa e a sociedade te ver de maneira diferente;, desabafa. Quando encontrou um que a aceitou, foi encaminhada para o Projeto ViraVida. Assim como Sandra, muitas mulheres violentadas têm nos filhos um fôlego a mais para lutar.

O nascimento da menina fez com que a jovem conseguisse vislumbrar algo além de pancadas, socos e chutes gratuitos. ;Este ano, consegui superar minha dependência do álcool, consegui meu cantinho para nós duas;, orgulha-se. ;Não quero que ela tenha a vida que eu tive.; Sandra está quase no primeiro ano do ensino médio. Com a bolsa que recebe do programa, aluga uma quitinete em São Sebastião. ;Ainda me dói falar, vem aquela raiva, mas estou aprendendo a lidar com meus sentimentos. Não tenho vergonha do meu passado. É uma superação para mim.;

Rita não é de muitas palavras. Em menos de 10 minutos, conta sua história: tinha 8 anos quando os pais se separaram. Quando a mãe morreu, em 2009, ela e as duas irmãs passaram a morar com o pai. Ele, alcoólatra, agredia as filhas sem dó. Apesar de não ter consumado o ato sexual com a filha, o patriarca protagonizava cenas obscenas e gostava de fazê-la de plateia. Aos 15 anos, fugiu de casa. Foi para a casa de uma pessoa da escola. Não deu certo. Passava temporadas nas casas de ;colegas de farra;. Relações pouco profundas e a vida desregrada e ilusoriamente livre resultaram no vício em drogas e em álcool. Rita, além de usar, também traficava.

Aos 16 anos, engravidou. A ideia de ter um filho a assustou, mas serviu como um estalo. Parou de beber e de usar drogas. Dois anos depois da descoberta, conheceu o ViraVida, por meio de um pastor. ;Estou aqui há um ano, voltei a estudar;, conta. ;Só depois que tive meu filho, acordei para a vida.; Deixar os vícios adquiridos não está sendo fácil, ela admite. Porém, a fé, o filho e a vontade de estudar a impulsionam. Hoje, ela tem até planos ; luxo a que não se permitia quando não sabia nem onde ia passar a noite. ;Quero fazer faculdade, inglês. Às vezes, quero ser bombeira; outras, professora de educação física;.
Luana é mais falante. Depois que a mãe morreu, ela e os irmãos iam para as ruas pedir dinheiro. O pai raspava sua cabeça, para que ela se parecesse com um menino. Para garantir o dinheiro do Bolsa-Família, ia para a escola só de vez em quando. O pai era contra: para ele, estudar era ;coisa de vagabundo;.

Na verdade, o medo do pai era que alguém descobrisse que ele a estuprava. ;Ele dizia que, se eu contasse para alguém, as pessoas me chamariam de prostituta;, relembra. Após os abusos, o pai a espancava. Luana gostava de estudar. Quando podia, fugia e ia para as aulas. Uma professora estranhou o comportamento da menina, sempre machucada, agressiva e arredia. Luana contou como era sua rotina e a docente se horrorizou. ;Ela me disse que isso não estava certo, mas meu pai sempre me disse que era normal primo se casar com prima e pai ser avô também, ao mesmo tempo.; Luana passou por abrigos e casas de acolhimento, mas eles só podiam ajudar com a denúncia formalizada, o que só aconteceu quando o irmão quase perdeu a consciência de tanto apanhar.

A vida no abrigo foi o que deu novos sonhos aos irmãos. Além de tratamento psicológico, os dois conseguiram estudar. ;Eu tinha muito medo e raiva das pessoas, porque eu achava que elas me olhavam diferente;, confessa Luana. O pai agressor não tem mais a guarda de Luana e de seu irmão. Luana mora sozinha. Apesar de se sentir triste por não ter mais família em Brasília além do irmão, que ainda está no abrigo, por não ter 18 anos completos, a vida ainda a anima. ;As pessoas que estão ao meu redor são a minha nova família. Hoje, eu sei que tomei essa decisão não só por meu irmão, mas por mim.;

Onde denunciar


Disque Direitos Humanos ; 156, opção 6 (Serviço do GDF)
; Disque 180 (Serviço do Governo Federal)

Deam - Delegacia Especial de Atendimento à Mulher
; Endereço: EQS 204/205 ; Asa Sul
; Telefones: (61) 3442-4300 /
3442-4328

Núcleo de Gênero
Pró-Mulher do MPDFT
; Endereço: Ed. Sede do MPDFT, sala 139, 2; Etapa
; Telefones: (61) 3343-9998/3343-9625 ; Fax: (61)3343-9948
; E-mail:
pro-mulher@mpdft.mp.br

Defensoria Pública
; Endereço: Fórum José Júlio Leal Fagundes, Setor de Múltiplas Atividades Sul, Trecho 3, Lt 4/6,

Bl 4 ; Térreo
; Telefones: (061) 3103-1926/1928/1765
; Horário de funcionamento: Segunda à sexta-feira
de 12h às19h

Núcleo de Assistência Jurídica de Defesa da Mulher e do Fórum Leal Fagundes
; Endereço: Fórum José Júlio Leal Fagundes, Setor de Múltiplas Atividades Sul, Tr 3,
Lt 4/6, Bl 4 ; Térreo
; Telefones: (061) 3103-1926/1928/1765
; E-mail: nucleodamulher@tjdft.jus.br

Pró-Vítima
Endereço: Estação Rodoferroviária, Ala central, Térreo, Zona Industrial
Telefone: (61) 2104-1923/1934

Leia a reportagem completa na edição n; 446 da Revista do Correio.

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