postado em 22/12/2013 08:00
Aos 21 anos, a holandesa Sophie van der Stap era estudante de ciência política na Universidade de Amsterdã, tinha uma agenda de telefones cheia de amigos, os fins de semana ocupados em bares e noitadas, entre outras diversões, e a cabeça cheia de planos. Até que seu mundo parou. Em janeiro de 2005, depois de passar por umas e outras consultas, devido a um cansaço insistente e a queixas de pontadas no peito, foi diagnosticada com um tipo raro de câncer no pulmão.
O rabdomiossarcoma é um tumor invasivo que acomete crianças e jovens de até 19 anos e que, por algum motivo que fugia até mesmo à compreensão dos médicos, veio a cair como uma bigorna sobre os planos de vida de Sophie. No momento do diagnóstico, a menina tinha possibilidades limitadas de tratamento e 15% de chances de passar ilesa por ele.
No hospital, entediada, com raiva dos médicos e, de repente, vivendo uma vida que havia passado de promissora a inimiga, Sophie começou a escrever um diário. O resultado dos desabafos de uma menina de 20 e poucos anos às voltas com um câncer raro e o medo da morte iminente foi parar nas prateleiras. A garota das nove perucas (Editora Livros de Safra, 207 páginas) foi lançado este ano no Brasil. Nele, a autora fala de seus medos e da maneira como aprendeu a lidar com os sintomas da doença e os efeitos do tratamento ; a queda de cabelo, inclusive, especialmente traumática para uma menina jovem no auge da beleza.
;Sobrancelhas e cílios fazem muita diferença! Parecia um alienígena;, relembra. Por meio das perucas, a menina redescobriu autoconfiança e capacidade de conquistar desconhecidos por festas e bares, pessoas que não sabiam que ela tinha uma doença grave e que, portanto, a deixavam confortável o bastante para fingir que, de fato, o câncer não existia.
Cada uma de suas cabeleiras de cortes e cores diferentes ganhou um nome. Daisy, Stella, Bebé, Lydia, Uma, Pam, Platina, Blondie e Sue acabaram por revelar lados de Sophie que ela mesma não conhecia. O ;um ou dois anos de vida; que os médicos lhe creditaram no momento do diagnóstico foi atropelado pela jovem e hoje, nove anos depois, a doença está em remissão e ela vive como escritora em Paris, com seus próprios cabelos. Em visita ao Brasil para divulgar o livro, ela conversou com a Revista.
Você foi diagnosticada aos 21 anos, uma idade em que todos pensam ser imortais. Qual foi o pior momento?
Não houve apenas um momento difícil. Receber a notícia sobre o câncer foi simplesmente insuportável. O mais engraçado é que eu não tenho lembrança clara sobre os pensamentos que me ocorreram naquela hora. Não havia certeza se meu caso teria tratamento. Então, quando o médico disse ;vamos começar o tratamento;, isso me deu esperança. O tratamento, por si só, não foi o mais pesado. A insegurança e o medo de morrer pesaram mais, além da solidão de estar nessa ;ilha do talvez morrer; e não poder pensar no amanhã enquanto todos à sua volta podem.
Sua mãe também teve câncer. Antes do diagnóstico, você tinha medo de que pudesse passar por isso algum dia?
Não. Achava que câncer era algo para mães, pais e avós, não para pessoas jovens.
Seu livro foi escrito no hospital. Já gostava de escrever antes ou foi uma descoberta?
Eu nunca fui muito boa em escrever na escola ou na faculdade. Não sei se fui eu quem descobriu a escrita ou se foi a escrita que me descobriu, porque ela simplesmente veio até mim, já que não havia mais nada que eu pudesse fazer. Ao mesmo tempo em que estava assustada e que só tinha mais um ou dois anos de vida, estava entediada. Era uma batalha usar meu tempo de forma proveitosa. De repente, eu estava escrevendo e não via mais o tempo passando. Quando você escolhe suas palavras, suas cores, ou qualquer outra coisa, você se torna o senhor do tempo novamente. Por meio da minha escrita, pude me sentir no controle novamente. Pude colocar tudo nas minhas palavras, colocar cores no ambiente feio que é um hospital. Pude dar apelidos engraçados às enfermeiras, pude amar ou odiar meus médicos. A escrita foi um processo de cura. Sem o câncer, eu talvez nunca tivesse descoberto a escrita. E escrever é uma parte enorme de mim hoje. Eu não poderia viver sem escrever.
Você ainda escreve?
Vivo como escritora. E pode parecer fantástico ser uma escritora morando em Paris, mas não é bem assim (risos). Mesmo se eu não tivesse o câncer, não poderia viver sem escrever. É um jeito de entender o que está acontecendo fora de mim ou dentro de mim e fazer isso pertencer a mim de verdade.
Pelo que conta no livro, você sentiu muita raiva dos seus médicos no início do tratamento. Culpou alguém ou alguma coisa pelo que estava acontecendo com você?
Quando releio meu livro, algumas vezes eu me choco sobre como eu falava dos meus médicos. Eles ficavam com toda a porcaria que saía de mim (risos). No início, me senti enganada, roubada. Mas, depois, comecei a pensar ;por que não eu? Por que outra pessoa?;. Eu acredito que, no início, eu projetava todo medo e ansiedade no meu médico. Porque, sem ele, a doença não existiria. Foi ele quem deu nome a ela.
Antes de as perucas chegarem e de você se adaptar a elas, foi muito difícil se olhar no espelho e se ver careca?
Foi horrível ter essa cabeça sem cabelo e ficar sem sobrancelhas e sem cílios. Eu parecia um alienígena. Parecia com o câncer. E foi difícil porque quando o câncer está dentro do seu corpo, você pode senti-lo, pois está mais fraca, mas não pode vê-lo. Quando se olha no espelho sem cabelo, vê que está doente. Quando comecei a usar perucas, desenhar sobrancelhas e usar cílios postiços, fiz o mesmo que fiz com minha escrita: transformei algo ruim em algo bom. Foi fantástico descobrir que só levava alguns minutos para vestir uma peruca, colocar maquiagem e ficar completamente diferente. Eu me olhava no espelho e via uma imagem de uma mulher diferente, então entendi que poderia ser aquilo, era só decidir ser. O que eu via no espelho eram imagens que eu associava a mulheres nas quais eu me inspirava. Eu me sentia feminina e forte. Eu encontrei muita força naquele cabelo todo.
Depois que soube que estava curada, sua vida voltou a ser como era antes?
Não havia muita vida antes do câncer. Eu tinha só 21 anos. A grande diferença é que, naquela época, estava sempre pensando no amanhã, na garota que eu queria me tornar, na vida que eu queria viver, nos países onde queria morar. Hoje, nunca penso no futuro. Eu me considero sortuda por ter encontrado algo de que eu gosto de fazer e na qual sou boa o suficiente para viver, que é publicar livros e escrever para jornais. Moro numa cidade que amo, Paris, e não estou mais pensando sobre como seria se morasse em Londres ou na Índia; Há menos ansiedade. Eu apenas me considero feliz e sortuda por viver essa vida.
Durante o tratamento, manteve alguns hábitos, como ler revistas de moda, experimentar roupas em lojas;
Sim e foi muito importante! Quis colocar isso no livro porque é importante estar em contato com o ;mundo normal;. Você não quer ler só sobre espiritualidade e morte. Ainda quer ser aquela jovem sem toda a porcaria de doença. Estava procurando pôr vida na minha vida. Ficava superfeliz de poder fazer as unhas com minha melhor amiga, falar de estilistas... tudo isso é parte de ser uma garota.
Como foi ter de aprender a encarar a morte de perto sendo tão jovem?
Não tenho certeza se aprendi a encarar. Simplesmente, tive de encarar, aceitar que talvez morreria. Imagine que você está no meio de uma tempestade e tem de ir de um lugar para outro, mas só tem uma bicicleta para fazer isso. É um saco, mas você precisa atravessar a tempestade com a bicicleta. Eu não diria que aceitei a morte nem que estava pronta para morrer. Mas, quando você vive a situação, você se torna forte o bastante para aquilo, até para se despedir do mundo. Olhando de fora, parece mais assustador do que quando você vive a situação. É muito difícil, mas, ao mesmo tempo, você aprende muito. Principalmente que você pode ser feliz ainda, mesmo com tudo aquilo.
Se você tivesse que passar por tudo de novo, seria diferente?
Agora, eu seria mais forte, porque já sei como é. Focaria muito mais naquilo que me faz bem, como a escrita e as pessoas que eu amo. Também pensaria ;bom, que sorte eu tive de ter esses 10 anos extras de vida, e que bom que eu os vivi intensamente;.