Quando soube que estava grávida de Ana, hoje com 2 anos, a psicóloga Júlia Clímaco, 31, lembrou-se de um trabalho da faculdade, no qual levou às escolas uma discussão sobre as separações que existem entre brincadeiras de meninos e de meninas. Porém, só quando começou a comprar o enxoval da filha, é que, de fato, teve noção de como acontece essa divisão no comércio. "Não imaginava que tudo é separado. Você entra em uma loja pedindo um presente e já perguntam qual é o sexo, fica difícil escolher livremente. Até mesmo um penico que fui comprar para minha filha foi assim. A diferença, me disseram, é que o de meninas é rosa e o dos meninos tem mais cores, bem mais divertido. Comprei o masculino."
A identificação com o próprio gênero é um processo natural do crescimento de qualquer criança. Muitos pais, contudo, enxergam criticamente essa divisão, reforçada pelo mercado. "Eu não posso afirmar de forma categórica que essa situação está melhor ou pior. Mas vejo que as peças publicitárias hoje são mais marcantes: há um segmento de mercado que faz essa divisão entre meninos e meninas, e ela está sendo explorada", continua Júlia.
Para Silvia Düssel Schiros, colaboradora do Movimento Infância Livre de Consumismo, a separação em nichos de mercado vem carregada de um estímulo ao consumo por parte das crianças. Os rótulos (menino ou menina) fazem com que elas sintam necessidade de ter aquele produto específico, que se encaixa com sua identificação quanto ao sexo.
"A quantidade de produtos disponíveis também aumentou. Até em casos de brinquedos que costumavam não ter definição de sexo, agora vemos a versão ;para meninos; e a ;para meninas;, caso dos blocos de encaixar. Estamos testemunhando um retrocesso", argumenta Silvia. A Lego, empresa conhecida por seus brinquedos unissex, sofreu pressão ano passado ao desenvolver uma linha direcionada ao público feminino. Nos brinquedos da série Lego Friends, amigas se reúnem para ir a festas, decorar a casa e comprar produtos de beleza.
Robério Esteves, diretor de operações da Lego no Brasil, afirma que os brinquedos criados pela marca respondem ao que a sociedade espera, mas garante que, de acordo com as pesquisas realizadas pela empresa, meninos tendem a brincar mais com peças de montar. "A linha surgiu a partir de uma demanda de mercado, após quatro anos de pesquisas. Mas as criações são direcionadas para meninos e meninas. O que vejo hoje é que existem dois tipos de comportamento entre as famílias: as que estimulam os filhos a brincarem com o que é direcionado aos gêneros e as que não querem deixar que eles sejam influenciados dessa maneira", diz.
Para Michele Yulo, criadora e presidente da Princess Zone Inc., marca que não usa princesas em seus produtos para meninas, a delimitação entre sexos está mais evidente. "Isso é, certamente, impulsionado pela capacidade das empresas em obter maiores lucros quando elas dividem o sexos. Crianças e adultos tendem a seguir o que veem na publicidade. Caso contrário, as empresas não fariam isso."
Michelle acredita que os anúncios tendem a mostrar garotos hipermasculinizados e garotas sexualizadas. "Basta dar uma olhada em como os trajes de Halloween mudaram ao longo dos anos. A imagem fornece a dura realidade de como estamos levando a infância de nossos filhos", prostesta. Para Júlia Clímaco, o problema é que os comerciais são artificiais. "Lembro da Barbie e, na minha época, não havia tantas opções para ela, é verdade. Hoje, temos a Barbie executiva, a presidente. Mas a boneca é loira, peituda e de cintura fina. Ainda é um modelo estereotipado de mulher", pondera a psicóloga.
Júlia se vale de artíficios, como gravar os desenhos que a filha vai ver, para evitar que ela assista aos anúncios, mas sabe que não pode ocultar da menina essa realidade. "As brincadeiras estão sendo mais bem relativizadas, mas, quando se fala de produtos, muita gente ainda espera por essa divisão. O grande desafio é fazê-la entender que ela, pode, sim, ser o que quiser. Mas o estímulo ao consumo e à necessidade de se encaixar nesse mundo como ;princesa; é grande", reconhece.
A psicóloga Bárbara Conte explica que a identificação da criança com o seu gênero ocorre a partir das relações com pais, cuidadores e pessoas do convívio. "Esse processo de identificação, que implica uma apropriação de determinados traços das figuras parentais, vai encaminhando a feminilidade e a masculinidade, e define que há diferença de genêro", afirma a especialista. Assim, a construção do que é "de menino" e "de menina" sofre influências que vão além do sistema reprodutor, cabendo aos pais informar os pequenos. "Por isso, acompanhar os filhos em suas escolhas, dialogar sobre seus achados, oferecer oportunidades de descobertas é o que vai constituindo o psiquismo. Os pais/cuidadores servem de via e de proteção para que a criança se arrisque a ingressar no mundo", avalia Bárbara.
O servidor público Marcelo Mourão Motta Grossi, 35 anos, conta que a filha, Valentina, 3 anos, sempre gostou de motos e, aos 2 anos, escolheu uma elétrica como presente. Aos 3, ela quis uma bicicleta e, na hora de comprar, decidiu pelo modelo decorado com a personagem Hello Kitty. Em casa, tem uma boneca que sempre chama de filha e trocou o balé pelo judô. "Em geral, um menino de 3 anos não teria uma boneca para chamá-la de ;meu bebê;. Isso não só reforça comportamentos, como os reproduz. Por que o menino não pode ter uma boneca que possa estimular o cuidado com um filho que ele possa ter no futuro?", questiona.
Michele Yulo começou a prestar mais atenção ao sexismo envolvido nos anúncios de brinquedos infantis quando a filha, hoje com 7 anos, teve um desejo incontrolável de imitar o pai ; sempre com um cinto de ferramentas e botas de trabalho. Foi quando ela começou a se questionar. "Não foi natural para mim. Apesar de nunca ter empurrado o cor-de-rosa para minha filha, não estava preparada para uma menina que não queria nada remotamente considerado ;feminino;. Ela abriu os meus olhos para o quão crianças são ;comercializadas; e para os efeitos nocivos que isso pode ter sobre elas."
Para ela, o mais importante é que os pais deixem os filhos a explorar livremente suas identidades, ajudando-os no processo de autoconhecimento. Silvia Düssel Schiros, do Movimento Infância Livre de Consumismo, diz que eles devem fazer frente à indústria. "Queremos criar cidadãos que, no futuro, ajam com naturalidade diante de tudo o que a vida tem a oferecer. Homens que participem ativamente da educação dos filhos e dos cuidados com a casa; mulheres que sejam respeitadas integralmente como mães e profissionais, sem que sejam ;treinadas; para serem apenas o que a sociedade espera delas", define.