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O maior vazio do mundo

Entregar um filho à adoção é um gesto radical, geralmente desesperado, cujas consequências acompanham tais mulheres por toda a vida. Muitas delas sonham com a redenção do reencontro

Flávia Duarte
postado em 09/03/2014 08:00
Entregar um filho à adoção é um gesto radical, geralmente desesperado, cujas consequências acompanham tais mulheres por toda a vida. Muitas delas sonham com a redenção do reencontroUm reencontro pressupõe a existência de uma separação prévia. A forma de lidar com essa ruptura, porém, varia pela causa, pela intensidade da dor que a provocou e pelo tempo de distanciamento. No caso da pedagoga Denise Kusminsky, 57 anos, a separação durou 34 anos. Ela buscava Sylvio, de quem só conheceu o som do choro de recém-nascido. Não tinha ideia dos traços de seu rosto, do porte do seu corpo, nem do tom da sua voz. Sylvio, por sua vez, só teve noção de que precisava reencontrar Denise já adulto, quando soube que ela era sua mãe biológica. Ele foi buscá-la. Queria entender a razão que levou mãe e filho a seguirem rumos distintos.

A explicação, Denise contou a ele há quatro anos, quando o rapaz, de 38 anos, a procurou. Identificou a mãe pelo sobrenome incomum, que ela fez questão de manter como solteira, já pensando em deixar um rastro para o reencontro. Agora, num ato de coragem, a paulistana torna pública a decisão de entregar seu bebê aos cuidados de uma outra família. Ela acaba de lançar um livro de título que resume esse momento da sua vida. Reencontro fala das razões que a levaram a abrir mão da maternidade e como foi se apresentar como a mãe de um homem casado, já com filho e independente. "Eu ainda o via como um menino. Quis colocar minhas mãos sobre as dele e as dele já eram tão grandes; eram tão maiores. Eu imaginava que encontraria um garoto e não me conformava com aquela diferença entre idades", descreve a autora em seu relato.

Falar de experiência tão dolorosa é reabrir feridas que nunca se fecham. Denise teve oportunidade de conhecer seu filho depois de mais de três décadas. Hoje, são "amigos", como ela define. Agradece a chance de ter podido ser avó do filho dele. Mas a dor da lacuna em suas vidas permanece ; o remorso pelo tempo que nunca voltará, do passado do qual não fez parte. "Qual foi sua primeira palavra? Como era o som da sua voz? Esse som eu nunca, nem em sonhos, ouvirei. Acabou. O tempo passou e não admite volta", escreve Denise a seu primogênito.

Assim como ela, outras mulheres passam pela cruel decisão de entregar os filhos à adoção. Um gesto do qual não saem ilesas. Tornam-se rés perante sociedade ; são as "desalmadas", acusadas de abandono da própria prole. Muitas viram as juízas da própria história e, como pena, carregam uma culpa sem fim. Mas, na verdade, a maioria delas é apenas vítima de um contexto, carentes de suporte emocional, estrutura familiar, dinheiro e amor.

Diante de relatos de mulheres que tomam coragem para explicar o porquê de entregar seus filhos a outra família, fica a pergunta: qual razão maior, e tão sem solução naquele momento, as impediu de seguir no papel de mães? "Para entender a entrega, tem de entender primeiro quem é essa mulher, que, muitas vezes, também foi abandonada", considera a psicanalista Maria Luiza Ghirardi, estudiosa do tema e membro fundadora do grupo Acesso ; Estudos, Intervenções e Pesquisa sobre Adoção, do Instituto Sedes, de São Paulo.

O abandono parte do companheiro; da família; da sociedade; do Estado, muitas vezes omisso no papel de oferecer condições mínimas para a maternidade. "A entrega é um processo com variáveis psíquicas e sociais muito complexas. Não há dados que digam qual a maior causa, mas as questões socioeconômicas são algumas das razões que prevalecem", acrescenta Maria Luiza.

Algumas delas não conseguem amar seus bebês porque nunca foram cuidadas e se sentem incapazes de cuidar. Outras foram deixadas pelos companheiros e se viram sem condições de cuidar, sozinhas, de uma criança. Alguns filhos são frutos de traição, a prova mais concreta e indelével de uma relação fora do casamento, inaceitável para o companheiro. Certas mães não conseguem nem mesmo cuidar de si, seja por causa do desatino provocado pelas drogas, seja pelo desvario de uma mente doente. Há crianças que nascem como consequência da violência sexual e trarão, para sempre, com sua presença, lembranças que essa mãe quer esquecer.

Há até as que já são amparadas pela família, igualmente carente, e que também não podem assumir a responsabilidade por mais um rebento dessa mulher. Ou, simplesmente, há as conscientes de que aquele recém-nascido enfrentará tantas dificuldades, que a melhor sorte é dar a ele a chance de ter uma vida melhor, que ela própria não pode usufruir, muito menos oferecer. "O ato rompe com o mito das mulheres que trazem instintivamente o amor pela criança, pelo filho. O mito de que todas as mães devem amar seu filho de maneira incondicional e, por isso, são rejeitadas pela sociedade", acrescenta a psicanalista Maria Luiza Ghirardi.

Mas quem disse que elas não amam as crianças das quais abriram mão de ver crescer? "É um gesto extremo de amor: ter a lucidez de que não se pode cuidar daquela criança e de que é preciso buscar o melhor para elas", defende a juíza Vera Deboni, da Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, também coordenadora da Secretaria da Infância e Juventude da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

Histórias apagadas
Poucos são os estudiosos no Brasil que se envolvem com o tema. Muitos se concentram nos pais adotivos ou nas crianças que esperam por um lar. Raros são os que vão atrás dessas mulheres, vistas como cruéis. Por isso, faltam dados precisos que contabilizem as razões que justificam a entrega dos bebês. "Não temos o perfil dessa mãe. A sociedade tende a apagá-la quando ela entrega ou rejeita a criança", esclarece Maria Luiza Ghirardi.

Elas também se escondem. Querem esquecer a história da qual foram protagonistas. Difícil encontrar quem topassem a entrevista. As que aceitaram choraram ao recontar uma história carregada de desamparo, culpa, dor e esperança de um dia conhecer essa criança para pedir-lhe perdão.

Denise enfrentou o passado com bravura. Contou tudo em um livro. Mas nem sempre foi assim. Até que o filho a procurasse (saiba como Sylvio encontrou a mãe biológica na próxima edição da Revista), só os pais dela e o marido conheciam o segredo. Nem as quatro filhas desconfiavam.

A pedagoga engravidou de um namorado aos 18 anos. De família de classe média, convivia com o preconceito de ser mãe solteira nos anos 1970. O pai da criança sugeriu que abortasse. Os pais de Denise não estavam em condições de ajudá-la. Mas a moça estava decidida a preservar a vida do bebê que carregava. Por isso, optou pela doação. A sugestão foi feita por um médico da família, que entregaria o filho dela a uma família que ele sabia que cuidaria bem do menino.

Denise foi morar na casa dos pais desse médico, enquanto a barriga crescia. Para os amigos e parentes, a jovem foi aproveitar uma temporada em outro país. Na verdade, ela passou os meses da gestação idealizando a volta do pai da criança. Assim, poderiam ter uma bela família. Nunca aconteceu. "Esperava fazer meu filho feliz e eu não tinha um lar para oferecer a ele. Há 38 anos, o conceito de lar era pai, mãe e filhos. Eu não tinha condições emocionais para criá-lo sozinha."

Também foi a falta de apoio que fez com que a produtora de eventos Ilda Aparecida do Nascimento, 42 anos, não encontrasse forças para assumir a maternidade. Moça pobre, saiu do interior do Paraná para trabalhar como doméstica na cidade grande. Dos encontros às escondidas com o filho da dona da casa, veio a gravidez.

Com medo, pediu demissão e voltou para a casa da mãe. Diante de tantas dificuldades financeiras enfrentadas pela família, não teve coragem de contar. "Até hoje minha mãe não sabe", diz. Sozinha, decidiu mais uma vez sair de casa para ter seu filho bem longe dali.

Foi idêntico o destino da professora e conselheira tutelar Eva Vanderli Chaves, 48 anos, que também não teve ajuda do namorado quando engravidou aos 15 anos. Os pais ; "pessoas simples e preocupadas com que os outros iriam pensar" ; a expulsaram. Sem ter para onde ir, acatou o que lhe foi sugerido: assim que a criança nascesse, seria entregue a outra família.

"Meus pais já faleceram, mas acho que eles sabiam que eu sofria", comenta. "Mais tarde, fiquei sabendo que minha mãe deu um irmão meu, que não era filho do meu pai, e uma tia entregou um filho dela para adoção. A história se repetiu comigo. Culpei muito os dois, mas hoje perdoei", relata Eva.

Trata-se de uma solução extrema comum em contextos de privação material e de falta de afeto. "Meu pai era ranzinza, ruim. Batia na mãe e na gente. Ele dizia que eu teria de abortar", conta a cearense Rita Jordânia de Souza, 43 anos. Filha de um pescador do Ceará, a cabeleireira já tinha um filho quando descobriu a outra gravidez. Em casa em que há pouco para se dividir, não aceitaram uma boca a mais para comer. Desesperada para proteger o filho, abriu mão da cria.

Trajetória semelhante foi percorrida por Anália. Órfã de pai e mãe, solteira, com duas filhas pequenas, ela foi morar em Goiânia com a irmã mais velha. Aos 23 anos, engravidou de novo. A irmã falou: se fosse menina, ela teria de dar. "A gente era muito pobre, morava em casa de chão de terra. Não tinha gás. Passávamos muita necessidade", conta, com a cabeça baixa.

Anália Elias da Silva Santos, porém, achou que, quando a terceira filha nascesse, a irmã seria demovida da ideia. Não foi. "Eu levei minha neném para casa e minha irmã ficou muito nervosa. No outro dia, tive de levá-la ao trabalho dela e entregá-la a outra família", conta, "pelejando para não chorar", como diz. Hoje, Anália vive em Brasília e sonha em reencontrar a caçula.

Linda Alexsandra Figueiredo da Silva também perdeu os filhos para a falta de oportunidades. Mãe de um casal de gêmeos, precisou deixar, há quase 15 anos, os filhos com uma tia para trabalhar como garçonete. A mãe tinha falecido, o pai das crianças nem sequer desconfiava da gravidez. Com uma aposentadoria minguada, a tia não podia ajudar. "Ela falou para eu dar meus meninos. Mas como eu ia dar? Não sou cachorro, que tem a cria e, depois, os filhotes são distribuídos", compara.

Exasperada, a forma que a moça encontrou de garantir a sobrevivência dos filhos foi a prostituição. Logo recebeu um convite para fazer programa na Espanha. Passou sete anos vivendo ilegalmente naquele país. Foi um período em que se envolveu com drogas (consumia e traficava); escondeu-se da polícia; vendeu o corpo por algo em torno de R$ 50. Deportada, não teve coragem de procurar os parentes. "Se minha família não me queria antes, imagina aparecer drogada na frente deles. Claro que eu pensava nos meus filhos, mas tinha medo da rejeição", diz, emocionada.

Leia a reportagem completa na edição n; 460 da Revista do Correio.

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