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De mala e cuia

Eles não apenas deixaram o Nordeste, como fincaram suas raízes por aqui. Mais de 600 mil nordestinos vivem no DF e ajudam, com seus diferentes sotaques, a formar o suculento caldo de cultura que torna Brasília, aos 54 anos, muito mais interessante

postado em 20/04/2014 08:00

Eles não apenas deixaram o Nordeste, como fincaram suas raízes por aqui. Mais de 600 mil nordestinos vivem no DF e ajudam, com seus diferentes sotaques, a formar o suculento caldo de cultura que torna Brasília, aos 54 anos, muito mais interessanteAssim como Brasília, Teresina, capital do Piauí, é uma cidade planejada. O músico Clodo Ferreira, de 63 anos, sabia disso desde criança. Porém, somente quando o avião que o traria para o Planalto Central sobrevoou sua terra, é que ele, aos 13 anos, pôde ver o traço urbanístico desenhado pelas luzes amarelas dos postes, que se acendiam durante o crepúsculo. ;Era o fim do dia e vi, pela primeira vez, minha cidade, com as marcações das ruas. Tive aquele sentimento de estar partindo.; Entretanto, o fim da viagem proporcionou a ele uma emoção diferente. Ao chegar aqui, à noite, Clodo também viu uma cidade planejada.

Na lembrança dele, a iluminação era branca, muito clara, marcando fortemente a identidade da nova casa. Isso o fez pensar que não estava tão longe quanto imaginava. ;Aquilo me impressionou muito e me trouxe uma sensação maravilhosa: não tive medo. Não senti como uma mudança, mas uma continuidade de algo que já vivia.; Assim como ele, um sem-número de nordestinos encantou-se ao chegar à capital do Brasil. Antes, na esperança de ver o sonho de Juscelino Kubitschek sair do papel. Hoje, na expectativa de ver os próprios emergirem. Os candangos não estão mais aqui como operários fugidos da seca.

Brasília cresceu e, como toda cidade grande, não tem mais tanto apelo para se tornar uma Eldorado. O Nordeste também ascendeu economicamente, oferecendo mais oportunidades, mesmo que problemas existentes em 1960, como a escassez de água, ainda sejam recorrentes. Entretanto, a capital do país ainda é uma filial dos nove estados que formam aquela região. De acordo com os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 688 mil nordestinos residentes no Distrito Federal. Para efeito comparativo, depois deles, são 293 mil os que nasceram no Sudeste.

A pobreza da região na época em que Brasília começou a ser construída justificou a presença maciça deles entre os operários. O jornalista e historiador Jarbas Silva Marques, que veio para cobrir o surgimento da cidade, lembra que era de Luiz Gonzaga a voz que mais saía pelos alto-falantes da Rádio Nacional. ;Dos 62 mil operários que construíram Brasília, mais de 50% eram do Nordeste.;

Eles não apenas deixaram o Nordeste, como fincaram suas raízes por aqui. Mais de 600 mil nordestinos vivem no DF e ajudam, com seus diferentes sotaques, a formar o suculento caldo de cultura que torna Brasília, aos 54 anos, muito mais interessanteO padrão atual de imigração do Nordeste para o DF é diferente: recém-aprovados em concursos públicos, alunos que escolhem a Universidade de Brasília (UnB) para sua formação superior, o staff de políticos de estados brasileiros que não volta para suas cidades ao fim do mandato etc. Em comum, uma cultura que, diferenciada em seus pontos específicos, une todos na construção da identidade do brasiliense.

;Aqui, você tem gente de todos os lugares, cada um procurando valorizar suas raízes e, por outro lado, também realçando as virtudes de Brasília. Hoje, nossa cidade é riquíssima, na medida em que ela representa o somatório dessas experiências e dessas culturas. Na minha visão, é isso que forma o encanto daqui;, afirma o cearense e ex-procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Nascido em Fortaleza, ele chegou à capital em 1982, depois de 10 anos morando no Rio de Janeiro.
Gurgel nunca entendeu a máxima, tão repetida, de que é preciso um ano para amar ou odiar a capital. ;Gostei daqui já na minha primeira semana. Adotei a cidade como minha e hoje me orgulho de dizer que meus dois filhos são candangos. Volto sempre ao Ceará e ao Rio de Janeiro, mas as minhas raízes estão em Brasília;, completa.

Brasília é uma cidade que diminui distâncias. A localização central a faz próxima de todos os lugares do Brasil. Isso sem mencionar a melhor estrutura aérea e rodoviária para quem precisa visitar os parentes. Jarbas Silva Marques diz que, na época da construção, sair de Goiânia em direção ao canteiro de obras levava quatro dias e quatro noites. ;Naquela época, não existia estrada e todos os motoristas tinham de viajar com ajudantes, porque os carros atolavam. Para você ver o que era o Brasil antes da construção de Brasília.; Para o Nordeste, então, a espera era ainda maior.

O jornalista cearense Fernando César Mesquita, um dos fundadores da Casa do Ceará, chegou aqui em 1963. Lembra que, naqueles tempos, havia apenas um voo semanal até Fortaleza. ;Agora, são 12 voos diretos por dia. Além disso, há a internet, pela qual você pode ouvir todas as emissoras de rádio do Ceará e também as redes de televisão. Isso nos aproxima mais do nosso estado.;


Quando tudo começou
Eles não apenas deixaram o Nordeste, como fincaram suas raízes por aqui. Mais de 600 mil nordestinos vivem no DF e ajudam, com seus diferentes sotaques, a formar o suculento caldo de cultura que torna Brasília, aos 54 anos, muito mais interessante

Brasília começou a sair do papel em 20 de abril de 1957. O engenheiro agrimensor Roberto Veloso havia chegado ao escritório no qual, em Goiânia, o engenheiro Bernardo Sayão recrutava trabalhadores para erguer o projeto de Lucio Costa. Em uma conversa sem burocracia, Veloso ganhou trabalho e recebeu um pedaço de papel com a assinatura de Sayão que dizia: ;Chofer, leve esse moço a Brasília.;

O agrimensor apresentou o bilhete ao primeiro caminhão que soube estar indo em direção ao canteiro de obras e, durante quatro dias e quatro noites, seguiu ajudando, de tempos em tempos, a tirar o veículo de atoleiros. Ao avistarem sua aproximação, os operários fizeram uma festa, que Veloso só entendeu depois de somar a carga e a origem da maioria deles: o carregamento de carne seca havia chegado e um dos pratos mais típicos da dieta nordestina daquela época seria servido novamente.

A história, contada pelo jornalista e escritor Jarbas Silva Marques, oferece uma dimensão da quantidade deles que aqui arriscaram tudo para buscar uma vida melhor. ;Roberto Veloso nunca mais comeu carne seca;, garante Jarbas. Pesquisador incansável da história de Brasília, acompanhando toda a construção e o crescimento, ele lembra que o trabalhador tinha a imagem clássica de um camponês: calça larga, camisa comprida, chapéu e bota, pois a sandália de couro teve de ser aposentada diante dos riscos envolvidos com os materiais de construção.

;Nos alto-falantes, nas vestimentas, nas conversas e no linguajar, o que se ouvia era Luiz Gonzaga. E o diploma de candango era um rádio transistor. A Rádio Nacional tinha um papel social muito grande. Uma mãe mandava uma carta para a rádio e ela era lida, pedindo notícias do filho. Ele ouvia pelo rádio transistor e dava a resposta.; Gonzagão, inclusive, provou in loco a visão de Lucio Costa de que o mar de Brasília é o céu. Sempre que vinha à capital, ficava hospedado na casa de Miudinho, seu antigo zabumbeiro, que chegou à capital para trabalhar como discotecário da Rádio Nacional.

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