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Brasília, traço do (outro) arquiteto

Quando se fala em Brasília, logo vem à mente a arte de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa. Mas o trabalho de um outro profissional é fundamental para a formação da identidade da capital. João Filgueiras Lima, o Lelé, recebe homenagemmundial na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza

postado em 11/05/2014 08:00

Quando se fala em Brasília, logo vem à mente a arte de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa. Mas o trabalho de um outro profissional é fundamental para a formação da identidade da capital. João Filgueiras Lima, o Lelé, recebe homenagemmundial na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza

Em 1957, desembarcava em Brasília do Rio de Janeiro um arquiteto recém-formado, funcionário do extinto Instituto dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (IAPB). Sua primeira missão na cidade que se desenhava entre estacas e alicerces era levantar os prédios da 108 Sul, que abrigariam os funcionários quando o instituto fosse definitivamente transferido para a nova capital. Oscar Niemeyer assinava o projeto. O engenheiro pernambucano José Ferreira de Castro Chaves, o Juca, também responsável pelo nascimento do Catetinho, tocaria as obras. Naqueles tempos, o clima de Brasília era mais ou menos como hoje. As estações se dividiam entre a seca absoluta e as chuvas torrenciais. Residia aí o primeiro desafio do arquiteto novato: cobrir as obras antes que a chuva chegasse.

A solução foi dada por Juca. O engenheiro construiria os prédios de dois em dois andares. Primeiro, terceiro e quinto andares e, então, a cobertura do sexto. Com o prédio pronto e protegido do aguaceiro, preencheria o "miolo". Tempos depois, comandando as obras de um conjunto de casas na W3 Sul, Lelé aprimorou a técnica inovadora e despertou a curiosidade de Juscelino Kubitschek. O presidente chegou a visitar as obras depois de ouvir que, em alguns trechos de Brasília, os prédios eram feitos "de cima para baixo". Primeiro, o arquiteto erguia delicadas estruturas de sustentação e, então, as cobria. Depois, cuidava da parte interna.

O jovem arquiteto que atraíra Juscelino a seus canteiros de obra e que ajudou a colocar a capital de pé é João Filgueiras Lima, o Lelé. Sua obra transcendeu a coordenação de rabiscos de outros mestres e, hoje, mistura-se à paisagem de linhas modernistas de Brasília. O Beijódromo, da Universidade de Brasília (UnB), um sonho antigo do amigo Darcy Ribeiro, é de sua assinatura. Os hospitais da Rede Sarah, que revolucionaram o atendimento hospitalar e o tratamento de doenças do aparelho locomotor, também são mérito de sua criatividade. Prédios no Setor Comercial Sul ; você já deve ter visto os edifícios irmãos Barão Vermelho e Camargo Correa na Quadra 01, com pequenas janelinhas verdes e alaranjadas ;, assim como a Casa dos Arcos, no Park Way, e muitas outras residências de linhas arrojadas por terrenos nobres da capital, também. Lelé integrou, a convite de Oscar, o quadro de professores do curso de arquitetura da UnB ainda no seu nascimento. A frente do Centro de Planejamento da universidade foi construída por ele enquanto lecionava. Saiu em 1965, na demissão coletiva em protesto à repressão militar.

Lucio Costa, no seu livro autobiográfico, Registro de uma vivência, incluiu Lelé em uma espécie de tríade da arquitetura modernista brasileira, completada por ele próprio e por Niemeyer: Lelé, o construtor; ele, a tradição; e Oscar, o criador. "Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares, arquiteto artista: domínio da plástica, dos espaços e dos voos estruturais, sem esquecer o gesto singelo ; o criador. João da Gama Filgueiras Lima, o arquiteto onde arte e tecnologia se encontram e se entrosam ; o construtor. E eu, Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima e Costa ; tendo um pouco de uma coisa e de outra, sinto-me bem no convívio de ambos, de modo que formamos, cada qual para o seu lado, uma boa trinca: é que sou, apesar de tudo, o vínculo entre o nosso passado, o lastro ; a tradição."
Quando se fala em Brasília, logo vem à mente a arte de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa. Mas o trabalho de um outro profissional é fundamental para a formação da identidade da capital. João Filgueiras Lima, o Lelé, recebe homenagemmundial na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza
A alcunha de "construtor" emprestada pelo urbanista define, talvez, o maior dos muitos traços de gênio que circundam sua obra. Lelé dominou, nos anos 1970 e 1980, o uso de concreto armado e, depois, da argamassa armada. Os pré-moldados tornavam suas construções mais baratas, mais simples e mais rápidas, quase como pecinhas de montar. "Na obra dele, não há disfarces, tudo é muito evidente. As soluções são cruamente expostas", resume Haroldo Pinheiro, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, amigo e parceiro de projetos de Lelé desde os tempos de estudante, quando bateu na porta do mestre se oferecendo para um trabalho. "Toda solução deve ser bem desenhada. Ela não deve ser escondida, escamoteada. Ao construir, a construção é bonita, o processo todo é bonito, e não precisa depois enfiar um forro de gesso para esconder. A coisa vem pronta."

Talvez menos lembrada do que a de contemporâneos construtores de Brasília, como Lucio Costa e Oscar Niemeyer, a história de Lelé se mistura à de Brasília e à de revoluções no fazer e no ensinar arquitetura no país. Não é culpa dele. "Falta no Brasil uma cultura arquitetônica. As pessoas não sabem quem são os arquitetos", lamenta Pinheiro. "E aí é a história do biscoito, que você não sabe se é fresquinho porque vende mais ou se vende mais porque é fresquinho. Tivemos dois grandes nomes na arquitetura brasileira; Um enorme que é o Niemeyer e o outro, mais discreto, mas muito reconhecido, o Lucio Costa. Talvez até essa enorme presença do Oscar tenha inibido o conhecimento de outros arquitetos", reflete.

Mas, se longe das pranchetas e dos livros especializados os traços de Filgueiras talvez passem anônimos em meio às curvas de Oscar, o mundo da arquitetura está, há muito, rendido a ele. A partir do mês que vem, a Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, um evento que ocorre desde o fim do século 19, homenageia o brasileiro e o coloca de vez no índice da arquitetura mundial. O tema deste ano, escolhido pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas, é "Fundamentals", um olhar sobre os elementos básicos da arquitetura e que lança sobre a obra de Lelé, entre outros, atenção especial. O evento vai até novembro.

A um oceano distante de Veneza, Brasília tem vista privilegiada para as obras de Lelé. Além de edifícios e páginas da história da arquitetura, ao partir para a Bahia, onde criou laços de vida e de arquitetura, o arquiteto deixou aqui amigos, lembranças e admiradores. Até o fechamento desta edição, estava internado em um hospital de Salvador, sob os cuidados dos médicos e na companhia de familiares. Nesta edição, a Revista revisita algumas das mais célebres obras do arquiteto de 82 anos. Elas contam, quase que sozinhas, um pouco da sua história.


Quando se fala em Brasília, logo vem à mente a arte de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa. Mas o trabalho de um outro profissional é fundamental para a formação da identidade da capital. João Filgueiras Lima, o Lelé, recebe homenagemmundial na Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza
Residência Nivaldo Borges, a Casa dos Arcos
Era 1960 quando o pernambucano Nivaldo Borges chegou a Brasília. A profissão ; veio como gerente de banco ;, assim como o espírito agregador que importara de sua terra, logo o presenteou com muitos amigos. Lelé era um deles. A amizade cresceria a tal ponto que, 12 anos depois, o arquiteto entregaria a Nivaldo o anteprojeto de uma residência, em um terreno de proporções gigantescas, no Park Way. "Lelé sempre fez casas apenas para pessoas muito íntimas, para os amigos mais próximos", constata o arquiteto Adalberto Vilela, que se debruçou em sua dissertação de mestrado, concluída em 2011, sobre as residências do colega pioneiro. "Ele precisava conhecer muito bem as pessoas antes de projetar. Os hábitos, como a família vive. São raras exceções as casas que ele projetou encomendadas por pessoas desconhecidas."

Do projeto à construção, foram seis anos. A obra só foi concluída em 1978. Construída com tecnologia milenar ; tijolos formando abóbadas, quase como templos religiosos ;, a casa guarda ainda traços modernos. É térrea, dividida em duas partes. A primeira reserva a parte residencial: quartos, salas, cozinha. A segunda, do outro lado da garagem, abriga piscina, salão de jogos e cinema, uma enorme paixão de Nivaldo. A obra, na época, foi tocada por outro grande amigo de Nivaldo, o mestre de obras catalão Tião, que estava na cidade. A destreza do mestre permitiu que as abóbadas de tijolo fossem feitas mesmo sem as instruções didaticamente explicadas por Lelé no projeto.

São 18.475m; de terreno, sendo 1.880m; construídos, quase que apenas com tijolos, vidro e madeira. Alguma coisa, pouca, de concreto. Assim, mesmo de dimensões gigantescas, a construção saiu relativamente barata. "É uma obra simples, mas não simplória", tenta definir Adalberto Vilela. São 10 quartos ; sete para a família, de nove filhos, e três para os empregados ; em que o pernambucano sonhava abrigar genros, noras e netos um dia. A casa vermelha, com ares de igreja, não tem portões, grades ou muros. As paredes de vidro são para a rua.

Nelson Fonseca, 50 anos, é o único dos nove filhos de Nivaldo que mora na casa. Na época da construção, segurança nem sequer era uma preocupação plausível. Hoje, um sistema com câmeras e alarmes foi instalado para reforçara segurança. "A casa é tão grande que acho que, se alguém entrar, não sabe nem para que lado ir", ri.

Nelson tinha 9 anos quando a casa começou a ser construída. Ele, o pai e o irmão ; os únicos homens da família dominada por mulheres ; ajudaram, tijolo a tijolo, Tião e Lelé erguerem a obra. "Eu era criança e tinha as mãos calejadas de carregar carrinho com material aqui no canteiro", lembra. Ele se recorda de ver Lelé, vez ou outra, visitando a obra, fiscalizando o andamento, trocando palavras com o amigo. "Essa casa tem uma coisa sentimental, todos nós vimos ela nascer. Meu pai não trocava uma tomada de lugar sem consultar o Lelé. Dizia que, se ele mandasse instalar um vaso sanitário no meio da sala, ele faria, tamanha confiança tinha no Lelé. Meu pai era desses pernambucanos com mania de grandeza. Queria uma casa grande para que todos os filhos se casassem e viessem morar aqui com a família. Mas a gente sabe que quem casa quer casa", conta.

Os filhos se casaram e partiram. O fim do casamento de Nelson coincidiu com o momento em que o pai, já doente, precisava de mais cuidados. Foi quando ele voltou para a casa onde passara a infância. Depois do falecimento do pai, ficou sozinho, ouvindo o eco da casa vazia. Hoje, preenche os espaços recebendo os amigos para festas e alugando a parte social da residência para eventos. Agora, de comum acordo, a família decidiu colocá-la à venda. A casa está anunciada por R$ 18 milhões. Mesmo com o aperto no peito, Nelson reconhece que não faz sentido manter o local vazio. "A gente torce para que seja uma fundação, um centro cultural ou algo do tipo. Mas que preservem a casa, até mesmo para que possamos voltar e visitar."

A residência de Roberto Pinho não fica exatamente em um terreno comum. O Altiplano Leste, região a 20 km do Plano Piloto, tem relevo bastante acidentado, o que poderia assustar arquitetos menos experientes. Lelé tirou o desafio proposto pelo amigo, proprietário do lote, de letra.

O convite deu origem a uma construção de formas ousadas que sem dúvida destoam da arquitetura tradicional do lugar, mas delicada na paisagem local e com vista privilegiada para os vales da região. Foi o último projeto residencial assinado por Lelé concluído em Brasília.

A pedido do amigo, a casa tem duas partes principais: a casa do caseiro, localizada na divisa do lote e que serve um pouco como guarita da propriedade e como canil, e a residência principal, mais ao fundo do terreno e de onde se pode admirar uma bela vista do cerrado, conforme descreveu Lelé no anteprojeto da obra: "Dali, se deslumbra uma vista magnífica de 180 graus marcada pela beleza nativa do cerrado ainda intacto, sulcados por três grotões que descem em queda acentuada para a mata ciliar", escreveu. Como o terreno era cheio de desníveis, a casa está sobre três plataformas de alturas distintas, limitadas por arrimos de pedras. Uma para a garagem, outra para a residência, e outra para a piscina. Do projeto à obra pronta, foram dois anos.

Leia a reportagem completa na edição n; 469 da Revista do Correio.

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