São 9h da manhã da quarta-feira que antecede a abertura da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. O desembarque do metrô na estação da Rodoviária do Plano Piloto é tranquilo, apesar de movimentado. Tão logo passam as roletas, um cheiro em especial invade o ambiente. A criança sentada em um dos bancos devora um pastel da Viçosa. A iguaria vende como água ; quem sabe até mais. Nem os funcionários nem os sócios entregam a conta, mas um vizinho inconfidente arrisca: "Já me disseram que são uns 5 mil por dia". Agora, durante a Copa do Mundo, o consumo deve crescer entre 20% e 25%. Com ou sem jogo, o ritmo de trabalho é o mesmo: 24 horas por dia em pelo menos uma das duas lojas do terminal.
A Pastelaria Viçosa é tão tradicional na Rodoviária quanto a marquise de concreto, a escada rolante quebrada (pelo menos uma delas não funciona), o baculejo dos policiais nos meninos que perambulam por lá. Pelo menos 700 mil pessoas circulam diariamente pelo terminal. Em dias de Copa, é difícil prever. De qualquer forma, a impressão que se tem do local não é diferente do que profetizava Juscelino Kubitschek no dia de sua inauguração, em setembro de 1960: "Em torno dessa magnífica plataforma, não tardará a instalar-se um centro borbulhante de vida;"
Ele dizia que ali seria o ponto de encontro. E de fato é: bem no centro do avião, como se tornou senso comum falar, ou no meio das asas da borboleta, como pensou Lucio Costa, a cidade-monumento, feita de concreto, curvas e verde, esbarra com o lugar de pessoas de todos os cantos. Pois essas pessoas de todos os cantos, nesta quarta-feira, têm mais sotaques do que de costume e trazem nos corpos as cores de suas bandeiras, sobretudo verde e amarelo. Os tons canarinhos são quase onipresentes nas lojas. Na Giro Carioca, o caixa Givanildo Gomes conta que foram 300 camisetas em um dia, um aumento de mais de 30% nas vendas. Os modelos saem por R$ 25 ou R$ 30.
Uma passagem rápida pela plataforma é o suficiente para desbancar a ideia de que Brasília é apenas a capital do poder e a sede da arquitetura moderna. Fica evidente também que não é uma cidade asséptica e que o aparente apartheid social não prevalece em todos os espaços, mesmo no Plano Piloto. Os sem-teto ainda dormem embaixo das árvores ou deitam-se ao sol, que começa a esquentar a temperatura que, na madrugada, chegou 17;C.
O vento forte e frio saúda os que deixam a marquise e tomam o rumo da Esplanada. Nos primeiros passos, uma senhora acostumada ao caminho alerta: "Cuidado com a máquina e a bolsa, é aqui que eles passam correndo, tomam tudo e correm para comprar drogas". Todo zelo é pouco, é verdade. Mas é fácil distrair-se. Não existe no terminal nenhuma menção visível sobre a intenção de Lucio Costa de projetar a Rodoviária como um mirante da Esplanada dos Ministérios e das obras de Oscar Niemeyer. Mas não resta dúvida de que ele foi plenamente bem-sucedido no seu desejo.
A certeza dos contrastes de Brasília chega no mesmo instante em que o horizonte envolve o sujeito que decide explorar a cidade, mas não pelas janelas dos carros, nas mesas dos restaurantes chiques ou nas piscinas dos hotéis. O tour pode ser feito por bicicletas ; uma opção é usar as do programa Bike Brasília, que o brasiliense e o turista adotaram de imediato e estão espalhadas por vários pontos do Eixo Monumental. As ciclovias estão prontas e bem-sinalizadas.
Os pés pintados nas calçadas, no entanto, também indicam uma rota de pedestres. Até a Praça dos Três Poderes são cerca de 2,5km ou 3km de caminhada. Naquela quarta-feira, a meteorologia avisa que o índice UV está muito alto. O vento frio, que chegou a 17km/h, pode enganar quem acha que o sol renderá apenas uma injeção de vitamina D. Protetor solar é indispensável.
Logo cedo, é possível perceber que turista gosta de andar, faz isso desde as primeiras horas da manhã e não necessariamente descansa com o sol a pino. Anda puxando as malas ou com as mochilas nas costas. Alguns deixam a bagagem mais pesada nos guarda-volumes da rodoviária. No trajeto rumo aos ministérios, é possível encontrar muitas coisas além dos monumentos, a depender do dia e do olhar. De toda forma, quem se aventura dá de cara com a vida que há na cidade.
No primeiro sinal de trânsito, após a saída da Rodoviária, avista-se o canteiro no gramado do Teatro Nacional. O verde em relevo com flores amarelas será uma feliz coincidência da época? Dali, também se observa o malabarista chileno Victor, 29 anos, seis deles em Brasília. Morador de Ceilândia, conhece todos os sinais de Brasília. Logo, dá a pista inicial sobre o comportamento dos gringos: "Nunca ganhei uma moeda deles". Mas acredita que o artista de rua, perseguido pela fiscalização, é vítima de preconceito. Talvez tenha razão, pois dali a pouco a senhora cega, que fica à porta da Catedral, ganhará moedas de um homem que, pelo crachá, pelo idioma e pela cuia de chimarrão parece um policial uruguaio que veio trabalhar na Copa.
A poucos metros dela, há sete homens perfilados, todos de chapéu, fazendo arranjos de flores do cerrado. Um deles sentencia: os estrangeiros não gastam mesmo; não compram porque não querem ter o trabalho de levar as flores. Ele deve saber o que diz. Como os amigos, já é parte da segunda geração de artesãos naquele ponto, um dos mais lindos cartões-postais de Brasília.
Dentro da Catedral, um espetáculo à parte: nesta manhã de outono e céu azul de poucas nuvens, a construção parece ainda mais bonita que o habitual. Se a arquitetura convida a entrar, os vitrais e as esculturas convidam a ficar. Uns sentam, observam e rezam. Outros caminham; chegam à cópia perfeita da Pietà de Michelangelo, a primeira em 500 anos. Feita pelo Museu do Vaticano em pó de mármore e resina, pesa 600kg e mede 1,74m de altura. Foi abençoada pelo papa João Paulo II e chegou a Brasília em 1989. Mesmo para os brasilienses, soa nova a informação de que é "micromilimetricamente" igual à original. Junto a ela, uma plaquinha: "Doada por Carmen e Paulo Xavier".
Perto da impressionante escultura, uma lojinha de souvenir. Vende água também, custa R$ 2, mas às 10h30 não tem troco para R$ 10. Sorte do ambulante, instalado lá fora, estrategicamente fora do alcance da vista dos fiscais da Agência de Fiscalização do DF (Agefis). Com ele, a água custa R$ 3, mas sai um desconto para duas.
Nesta véspera da abertura da Copa do Mundo, a entrada da Catedral está especialmente festiva. Tem uma base móvel da Polícia Militar, um estande dos Embaixadores do Turismo, uma equipe móvel da Agefis, um casal com esperança de ainda conseguir marcar a data do casamento e a XVI Turma de Medicina da Universidade Católica de Brasília, que faz fotos, provavelmente, para a formatura ; além de selfies em série, a tal ponto que, em determinada hora, alguém grita: "Todo mundo aqui para fazer o megaselfie".
Aliás, fotos e selfies são tão comuns quanto os carros no Eixo Monumental, que tem movimento intenso, como convém a uma via onde circulam cerca de 50 mil veículos por dia durante a semana. As colombianas Juana Liévano, 25 anos, e Carolina Léon, 26 anos, não cansam de sacar o celular e registrar toda a imponência dos monumentos. Viajam pelo Brasil de férias desde 28 de maio. A ideia é visitar pelo menos três cidades-sedes. Assistirão a jogos em Belo Horizonte e Cuiabá. No meio do caminho entre uma e outra, desembarcaram em Brasília para um dia de turismo. São poucas horas. Não há tempo a perder. Por volta das 10h, já estão no grande vazio entre a Biblioteca Nacional de Brasília e o Museu Nacional Honestino Guimarães. Fechado, o museu está sendo preparado para a abertura da exposição EntreCopas Arte Brasileira 1950-2014, que seria inaugurada logo mais, à noite.
Contentam-se com o espaço em si, um grande vazio com espelho d;água e bancos com namorados. Aliás, ao longo de toda a Esplanada, onde tem um banco tem um casal. Thaís Marques, 20 anos, estudante de enfermagem e moradora do Park Way, e Leonardo Falcão, de 21 anos, estudante de engenharia civil e morador do Lago Sul, é um deles. Daqui a pouco, vão estudar na Biblioteca pela segunda vez. Gostam do espaço e lamentam que poucos o conhecem. Antes, fazem um estudo da Bíblia. Evangélicos, parecem apaixonados. Nem se dão conta de outros casais, dos turistas que tiram fotos, do grupo que é maquiado, aparentemente preparando-se para uma performance, que talvez seja a gravação de um comercial ou algo do gênero.
A principal reclamação dos brasilienses em relação ao museu e à biblioteca é a falta de estacionamento. É difícil mesmo parar o carro, o que não deixa de ser uma boa desculpa para caminhar. Sem pressa e sem as obrigações do dia a dia a apertar o passo, é bem melhor. Assim, percebe-se facilmente que a véspera da Copa é dia de arrumação, ainda que muitas visitas tenham chegado antes da hora.
Ao longo da Esplanada, muitos garis. Os caminhões-pipa do Departamento de Parques e Jardins dão um trato nos canteiros. Já no início dos ministérios, é possível avistar a pintura da cúpula do Congresso. O espelho d;água do Palácio do Itamaraty, o monumento preferido de muitos brasilienses e arquitetos, passa por limpeza, e as plantas são aparadas. À pergunta "estão se preparando para a Copa?", o funcionário responde: "Não, é todo dia mesmo". Segundo o rapaz, ele e seus companheiros mantêm as plantas e recolhem objetos jogados na água ; de tudo um pouco: de moedas e joias a pneus velhos. O moço garante que, naquele dia, o Itamaraty estava aberto a visitas.
Quando ficam sabendo que poderiam ter entrado lá, as colombianas Juana e Carolina já passaram pelos ministérios, com um ambulante aqui e ali vendendo camisas e bandeiras do Brasil, kits para o Dia dos Namorados e bolos, uns bem na porta do Ministério do Trabalho. Elas estão agora na Praça dos Três Poderes. A visão lá de cima até embaixo de toda a Esplanada dos Ministérios as impressionou fortemente.
Não parecem tão cansadas, enquanto compram souvenirs de Gil Rodrigues de Araújo, natural de Natal, há 13 anos em Brasília, 11 na Praça dos Três Poderes. Ele se autointitula e, portanto, já é conhecido como tal, de "o poliglota da praça". Arranha, segundo ele, inglês, francês, espanhol e chinês. É ele quem conta logo a boa nova: "A maquete abriu". Reaberto naquele dia, o Espaço Lucio Costa, que abriga a maquete, recebeu entre as 9h e as 11h, 22 visitantes: seis de Brasília, três de Salvador, quatro de Belo Horizonte, dois de Paraty, dois de Aracaju, quatro de Campinas e um de Poços de Caldas. A maquete tátil, para deficientes visuais, não estava funcionando naquele momento. Mas um funcionário explicava, do lado de fora, um novo mecanismo para garantir o acesso a cadeirantes. A conferir.
De forma geral, a Praça dos Três Poderes é a sala de visitas do turista. Ali, uma casa de câmbio móvel está estacionada em frente ao Centro de Atendimento ao Turista, onde é possível obter informações, mapas, um manual com textos em português, inglês e espanhol, listas de guias por especialidade e idioma, além de uma agenda cultural da cidade. Importante: pode-se usar o banheiro, o que é um alívio. De cada lado da Esplanada, há dois banheiros químicos e é possível passar por eles sem notá-los.
Pelo menos nesta quarta-feira, os visitantes pareciam não estar com vontade de se queixar. As cariocas Larissa Tomé, 24 anos, e Luiza Chaves, 23 anos, voltavam da Chapada dos Veadeiros, mas passaram por Brasília na ida e na volta. Primeiro, fizeram o trajeto da rodoviária para cima, incluindo o Estádio Nacional Mané Garrincha, a Rainha da Paz e a praça onde os brasilienses se reúnem para o pôr de sol. Na volta, foram até a Praça. "Não achei que fosse tão tranquilo a questão da mobilidade. Mas não tivemos problema nenhum para nos locomover sem carro", conta Luiza.
Nas proximidades do Congresso Nacional, taxistas aguardam a sua vez, esperançosos que a subida na Esplanada não seja tão convidativa quanto a descida. Nesse caso, a comodidade custa R$ 15 até a Feira da Torre. Diante da pergunta se o movimento já aumentou em virtude dos turistas, o taxista de olhos viciados é rápido: "Não, os turistas vão para lugar onde tem coisa bonita, Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul". Como?! Corrige também ligeiro: "É que aqui eles eles fazem tudo num dia só e vão embora".
De todo modo não dá para encerrar o passeio, seja você turista ou não, sem ir à Torre de TV. Das bancas e da praça de alimentação, bem movimentada para uma quarta, diga-se de passagem, escolha a escada rolante da esquerda (a da direita não funcionava na hora do almoço naquele dia). Quase no alto, o Congresso aparece imponente. Suba no mezzanino, vá ao café (funciona de quarta a domingo, das 13h às 19h), olhe os produtos feitos por cooperativas do cerrado que você, brasiliense, provavelmente nunca ouviu falar. Depois, suba ao mirante, respire fundo e entenda de uma vez por todas por que Brasília é um patrimônio da humanidade e deve permanecer exatamente do jeito que é.
Colaborou: Sibele Negromonte