Flávia Duarte
postado em 26/10/2014 08:00
O rosto de traços perfeitos da servidora pública Ana Paula Granja se destaca em meio àquela dúzia de pessoas. Não só pela beleza. Ela é a única careca. É uma das personagens principais de uma exposição de fotos que retratam mulheres saudáveis e outras que viveram o drama de receber o diagnóstico de câncer de mama. Sem medo dos rótulos, o publicitário Nick Elmoor fotografou mulheres entre 19 e 74 anos. Algumas donas de um corpo intacto, outras com a silhueta mutilada, mastectomizadas por causa da doença. O resultado pode ser conferido na exposição Entretantas. A ideia era justamente essa. Não diferenciar as pacientes do câncer pelo físico. Todas foram fotografadas nuas. Sem roupa da cintura para cima. Ao admirar as fotos de cada uma delas, fica difícil dizer quem entrou na briga com um tumor no seio. Ana Paula talvez dê alguma dica pela falta dos cabelos. Mas é uma questão de suposição, já que a maioria das pacientes em tratamento perde os fios. Ela exibe a cabeça calva com tanta leveza e segurança que o estilo parece fazer parte de sua personalidade. Não é, porém. O cabelo raspado é temporário. Vai ser assim enquanto a moça de 45 anos estiver se tratando contra o câncer de mama. Impecavelmente maquiada, a falta das melenas não a deixa nem um pouco menos bonita. Claro que, no início, tudo isso abalou a autoestima. Quem estaria ilesa a tamanha mudança diante do espelho?
Quando se vê nas fotos, Ana gosta da própria imagem. Aceitou participar porque acredita que isso estimularia outras mulheres que vivem o mesmo momento a nunca deixarem a feminilidade de lado.
Essa foi uma das motivações do fotógrafo Nick Elmoor quando decidiu se engajar no projeto. Ele queria mobilizar pessoas, oferecer seu talento em prol de uma causa. "Queria fazer uma coisa bonita, uma coisa de moda." Assim, começou pelas modelos profissionais, depois convidou mulheres que enfrentam, ou enfrentaram, a doença. "Quase tudo que vejo sobre câncer é para fazer as pessoas chorarem", comenta o fotógrafo. Não era a intenção, porém.
Ele queria que suas imagens refletissem beleza. Em qualquer circunstância. "O que faz a mulher bonita não é o tamanho nem o formato dos seios, mas a atitude. Essas mulheres estão nuas, mas não estão despidas da roupa e, sim, do preconceito", define o fotógrafo. E, com tal espírito, ele se focou. Contou com parcerias. Em um estúdio mínimo e com a coragem dessas mulheres, deu vida ao projeto lançado neste Outubro Rosa, quando o câncer de mama é oficialmente lembrado.
Mas, para Nick, ajudar o outro é algo que deve ser feito fora de datas preestabelecidas. A vontade de chamar a atenção para o câncer, de retratar a beleza de mulheres sofridas pela enfermidade surgiu sem qualquer relação com o fato de ele próprio ter perdido uma irmã e a mãe para o mesmo mal. Ele mesmo enfrenta a doença desde 2009, quando descobriu um tumor raro no timo (glândula que faz parte do sistema imunológico). Passou por cirurgias, fez quimioterapia que enfraqueceu o corpo. Controlou a doença. Passou a viver por "períodos de alforria", como se refere aos intervalos entre um exame e outro em que o tumor dá uma trégua.
Agora, a doença reapareceu. Nick começa uma nova batalha, assim como suas modelos mastectomizadas. Apesar da coincidência de destinos, e de luta, ele diz que a dor não foi a maior motivação para o trabalho. "Tenho muita gratidão por estar vivo. Tenho gratidão pelo meu tempo. Por isso, pensei: ;Vou fazer qualquer coisa pelas pessoas;", afirma. "Todo mundo tem que doar o que tem de melhor, então doei meu trabalho e meu talento", acrescentou.
Foi também o que fazem de melhor que ofertaram outros profissionais badalados da cidade. Em nome da mesma causa, eles se engajaram na proposta de dar um conforto, uma alegria a pacientes com câncer. Helio Nakanishi, dono do HelioDiff ; Instituto de Beleza, há pelo menos dois anos doa parte da renda arrecadada com a venda dos produtos de beleza à Abrace. Os cabelos das suas clientes também são matérias-primas nobres. Antes descartadas, as mechas com 10cm ou mais são guardadas e entregues aos voluntários, que confeccionam perucas para pacientes que perderam os cabelos por causa das drogas que tratam o câncer.
Este é o segundo ano que o salão é parceiro da ONG Rapunzel Solidária, de São Paulo, para enviar as madeixas de quem também se sensibilizou com a causa e aproveitou a mudança de visual para ajudar outra mulher. E cabelo natural é caro. Helio estima que uma peruca não saia por menos de R$ 2.500. Assim, nem todas podem pagar para terem temporariamente uma nova aparência. Mais que isso, o cuidado com o outro não tem preço. "O mais importante é retribuir tudo que conquistei de forma elegante e solidária. É como se eu tivesse uma missão, além de ser cabeleireiro e artista", acredita.
Marcelo Vasconcelos, dono do salão de mesmo nome, também defende a ideia de usar o trabalho para fazer o bem e acariciar a alma de mulheres, muitas vezes dilacerada pelo diagnóstico. Foi quando duas amigas receberam a notícia do câncer que o cabeleireiro viu de perto o drama enfrentado diante do espelho por essas pacientes. Ele sabe o quão importante é o cabelo para o universo feminino. Afinal, trabalha com ele. Por isso, desde 2011, decidiu ajudar àquelas que já não têm fios próprios.
Começou a incentivar as clientes a doarem o que sobrava dos longos cabelos. Dono de uma fama de gostar de fios curtos, Marcelo logo discursa sobre deixar o visual mais moderno e ainda ajudar. Com isso, começou a ter retorno. Cada vez mais, consegue recolher mechas de cabelo, que são entregues aos cuidados da Rede Feminina de Combate ao Câncer. Ali, eles chegam a produzir, voluntariamente, até 30 perucas mensais para pacientes carentes.
Sempre que organiza os fios para doação, Marcelo posta nas redes sociais. São louros, cacheados, lisos, pretos; É uma forma agregar esforços. "Por pior que seja o assunto, as pessoas precisam falar disso. Toda essa divulgação e essa ação vão quebrando o preconceito", acredita o profissional. Dia desses, ele foi surpreendido com a própria iniciativa. Uma cliente dele, a nutricionista Gabriella Alves, 22 anos, sabendo que Marcelo é simpatizante da causa, pediu um dia de exclusividade no salão. Ela queria proporcionar a uma amiga, que acabara de saber que tem linfoma, um momento mais leve na hora de antecipar a inevitável queda dos fios. O cabeleireiro logo topou. A ideia era reunir amigos e familiares da moça e todos cortarem o cabelo juntos.
Ele só não imaginou que mais de 30 pessoas lotariam o salão em um domingo. As mulheres aproveitaram o talento de Marcelo, que transformou os cabelos longos em modernos curtos. Os homens rasparam a cabeça. Os cabelos foram doados. A paciente gostou da bagunça e se comoveu com a solidariedade. A moça doente ficou por último. Para aliviar o que poderia ser triste, Marcelo cortou o cabelo dela aos poucos. Mostrou como os cachos da jovem poderiam ter várias facetas até que ela ficasse completamente careca. Os convidados e a protagonista se divertiram. Marcelo, no fim, apesar de feliz, não conteve as lágrimas. "O emocional dessas pessoas já está fragilizado. É preciso encontrar uma forma de acolhê-las," define.
O choro também é inevitável quando a doceira Maria Amélia toca no assunto. Ela tem uma filha de 23 anos que, aos 3 meses de vida, foi diagnosticada com câncer nos rins. Sente na pele o que muitas mães vivem com crianças que lutam contra algum tumor. Por querer ajudar e compartilhar a dor desses pacientes, há três anos ela foi convidada pelo amigo estilista Fernando Peixoto, com o cerimonialista Cristin de Britto, para organizar festas de 15 anos às jovens que fazem parte da Abrace.
A iniciativa do trio proporciona às debutantes a realização do sonho de serem princesas por um dia. Com direito a valsa e a vestido condizente. Fernando Peixoto empresta um modelo a cada uma delas. Outros parceiros vestem os pais e as mães das meninas. Maria Amélia dá o bolo a cada uma delas e os doces. "Você nunca imagina que doces e bolos podem dar tanta alegria a alguém", comenta. E a festa é mesmo especial. Eles contam que algumas estão fracas em demasia, mas seguem para o evento. Fernando se emociona ao se lembrar de meninas que morreram depois do tão esperado dia. "Como se esperassem apenas isso", lamenta. Maria Amélia conta que uma delas morreu com as fotos da festa na mão. Impossível não se emocionar e não ter certeza de que quem sai ganhando é quem ajuda.