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"Me chamaram de maluca muitas vezes"

A história de Eliane Zanetti, que abriu mão de conforto, tempo e espaço físico para cuidar de animais vítimas de maus-tratos

Flávia Duarte
postado em 30/11/2014 08:00
A história de Eliane Zanetti, que abriu mão de conforto, tempo e espaço físico para cuidar de animais vítimas de maus-tratosForam incontáveis as vezes em que ela foi considerada louca, uma doida varrida. Tais adjetivos viraram até piada entre os familiares e, para a própria, não passam de palavras soltas ao vento. Se perguntam se é verdade que a têm como desequilibrada, ela apenas responde. "Me chamaram de maluca muitas vezes mesmo." E ri em seguida. O filho lhe atribui outro predicado. Prefere dizer que a mãe talvez seja um pouco "excêntrica". Seja como for, Eliane Zanetti, 51 anos, de fato, não é uma mulher igual a tantas outras. Ela abriu mão do próprio conforto, do tempo e até do espaço físico para lutar por uma causa especial: cuidar de cachorros e gatos vítimas de maus-tratos. Sem qualquer retorno financeiro, faz tudo movida por um amor inexplicável. Paixão nobre e sem lógica para ela e para os outros. Já chegou a abrigar mais de 500 animais no terreno onde mora. Hoje, convive com pouco mais de 200, já que um Acidente Vascular Cerebral (AVC) limitou um pouco sua capacidade física, mas não o desejo de continuar tocando o projeto.

A casa em que Eliane vive, nas proximidades de Luziânia, confunde-se com o espaço em que funciona o Augusto Abrigo. Na verdade, um não existe sem o outro. A chácara é ampla. Tem lugar suficiente para o conforto da bicharada. Do lado, nada de vizinhos. Talvez eles pudessem não gostar da ideia de ter um canil e um gatil tão próximos. Assim, muito melhor. Ninguém incomoda, tampouco é incomodado.

Ela se instalou naquele lugar primeiro, antes de os cães e os gatos chegarem. Mudou-se para a casa que fica em terreno espaçoso. Até que alguém, sabendo que é dona de um enorme coração quando se fala em animais, pediu que ela aceitasse como hóspedes duas cadelas que tinham sido vítimas de violência física. Uma tinha sido espancada e a outra, estuprada. Ambas abusadas pelo bicho-homem. "Nossa, isso acontece demais", comenta Helena, a primogênita de Eliane.

Depois da dupla, foram chegando outros bichos. Todos em situações igualmente dramáticas, violentados. Cachorro de rua que se vira bem sozinho, não é acolhido. Esse é safo e sabe se virar. O foco são os abandonados, sem qualquer chance de sobreviver se deixados sozinhos. E eles não pararam mais de seguir em direção ao mesmo endereço. Vieram mais dois, mais cinco, mais 10, até passarem o total de 500. Foi quando Eliane decidiu tornar o gesto de solidariedade em um projeto de vida. Em abril de 2008, inaugurou o Augusto Abrigo.

O nome é uma homenagem ao pai dela: Augusto. Foi dele que herdou o gosto e o respeito pela natureza. Seu Augusto era construtor e professor de mecânica, mas tinha dom especial com a natureza. Conta-se que ele era dono de um poder incomum: o de rezar para curar os bichos. Bastava ele fazer a oração e tocar o animal para pôr fim à enfermidade. "Levantava até plantas", orgulha-se.

Ele morreu no mesmo ano em que foi inaugurado o abrigo com seu nome, aos 85 anos. Não teve tempo de conhecer o espaço que foi batizado em sua homenagem, já que morava em São Paulo. Mas Eliane fica agradecida de, ao menos, ele ter sabido da existência do projeto. Augusto também quer dizer "sagrado".

Ela lamenta não ter nascido com o dom do pai. Mas quem disse que não? Eliane pode não fazer os bichos se curarem com o poder de rezas, mas os coloca sobre as quatro patas novamente pelo esforço e pela dedicação. Não só oferece amor aos que sofrem, como se propõe a cuidar das sequelas físicas que a violência deixa em criaturas tão indefesas diante da maldade humana.

Para curar a dor do corpo, ela montou uma espécie de hospital dentro de casa. Ali, estão internados, ao todo, cerca de 60 cães e gatos que se recuperam de alguma doença ou ferida. Eliane faz questão de apresentar o lugar. Apesar de os medicamentos estarem impecavelmente dispostos em prateleiras e o chão, muito limpo, o cheiro de amônia da urina recente de alguns deles, somado ao abafamento, pode deixar o visitante com a respiração interrompida. Ela se desculpa pelo odor, que provoca estranhamento em narizes pouco acostumados, mas contra o natural não dá para lutar. São animais e o lugar cheira naturalmente a cães e a gatos.

Ela, ao contrário, nem nota o ar mudar. E segue apresentando seus protegidos. Reconhece cada um daqueles pacientes pela história que levam para dentro do abrigo. Gabriela, por exemplo, é uma vira-lata franzina, praticamente sem pelos e nitidamente amedrontada. A cadela apanhou muito de homens e, por isso, ela os teme de forma generalizada. Os únicos que podem se aproximar dela são o marido e o enteado de Eliane.

No mesmo espaço está um cão manco. Ele também foi espancado e depois largado na rua. Há outro que está no soro. Com os olhos fechados, o cachorro de pelagem farta e cinza tenta sobreviver a um grave ferimento na pele. Outros já não correm mais risco de morte, mas levarão para sempre o trauma provocado por quem deveria cuidar deles, como o cãozinho que foi queimado com óleo quente em uma oficina mecânica. Saltitante, ele se aproxima de Eliane tão logo ela chega ao local. É de se supor que sempre será agradecido a quem o resgatou da dor.

Aliás, todos os cães a rodeiam. Todo o tempo. Onde ela está, seguramente tem um monte deles. Latindo, correndo. E ela, em sua cadeira de rodas, sempre leva um no colo.

Há dois anos, ela sofreu um primeiro AVC, que deixou parte de seu corpo imobilizado. "Os médicos chegaram a dizer que ela não sobreviveria", diz o filho Alberto Rubinato, 30 anos. Um ano e meio depois, mais uma vez o corpo foi sequelado por novo episódio da doença. Eliane ficou em coma. Fez tratamento de reabilitação em São Paulo e no hospital Sarah, em Brasília. A filha Helena lembra que, quando o cérebro dela foi despertando para a realidade, ela não reconhecia a família nos primeiros dias. Mas dos animais nunca se esqueceu. Perguntava por eles e, quando estava internada, aos fins de semana, pedia para ir para casa visitar a cachorrada.

Aos poucos, ela foi se recuperando. Um dos lados do corpo ficou paralisado. Provavelmente, ficará imobilizado para sempre. A mulher que vivia na "correria", como ela define outros tempos, agora está presa a uma cadeira. Também perdeu a visão. "Só mantive a visão lateral e consigo ver um brilho em volta das coisas", descreve. Uma capacidade suficiente para reconhecer quem é o cão que está ao seu lado.

A filha Helena acha que a mãe resistiu por causa dos animais. Sem eles, talvez ela não tivesse mais nem se levantado da cama. "Já vi a Eliane doente, com crise de pedras nos rins, sair da cama só para cuidar deles", comenta o marido dela, Rafael Antunes, 37 anos.

Se antes Eliane vivia sem tempo para nada além do trabalho de cuidar do abrigo, hoje a limitação física a obriga a levar uma rotina mais pacata. Helena diz que, antes, falar com a mãe era um sacrifício. Ela estava sempre envolvida com alguma questão humanitária. Era uma mulher que gostava do corre-corre. Nunca teve vida social agitada, mas estava com a agenda sempre cheia por causa do projeto. E, sempre que sobrava tempo, se dedicava aos amigos. Eles contam que, se alguém falasse que queria comer um bolo, ela logo se prontificava a fazer.

Vaidosa, sempre gostou de saltos e maquiagem. Conta que não começava o dia sem pintar o rosto. Hoje, desapegou-se. Viu-se obrigada a deixar truques tão femininos um pouco de lado. Sem a visão, já não consegue mais usar pós, batons e blush. A filha até poderia ajudar, mas, com a doença da mãe, foi ela quem assumiu o projeto. Assim, falta tempo para tal luxo. Eliane não perdeu a beleza, porém. Leva traços finos no rosto e um sorriso fácil, que ilumina seu semblante.

Também é resignada. Não reclama do retorno que a vida lhe deu. "Como isso pode acontecer com uma pessoa que sempre fez bem a todo mundo?", questiona-se, emocionada, Meire Lopes, a melhor amiga dela. Mas Eliane nem sequer faz a mesma pergunta. Sem seguir nenhuma religião específica, ela acredita em carma e que nada na vida acontece por acaso. Se está passando por tal provação, algum motivo há. Por isso, não lamenta. "Minha mãe é o tipo de pessoa que não se apega ao passado. Ela pensa que tem que tocar a vida para a frente", comenta Alberto.

Ao contrário, as incapacidades físicas a deixaram ainda mais perto de seus protegidos, acredita. "O Lobo está como eu", brinca, ao apresentar o cão idoso e cego, cujo físico em nada tem a ver com o que se espera do nome escolhido para batizá-lo. Ela também se identifica com outro personagem famoso do abrigo. O cão de nome Minhoca não tinha as duas patas traseiras. Quando Eliane chegou em casa impossibilitada de andar, logo recebeu a compaixão do animal. Ainda pouco adaptada com o novo meio de se locomover, Minhoca era solidário e empurrava a cadeira dela com o fucinho.

Eliane relembra e ri. Nessas horas, tem certeza de que os animais são mais que grandes companheiros. Minhoca morou por três anos naquele espaço sagrado. Mas há quatro meses foi adotado. Eliane chorou, mas deixou o amigo partir. "Você percebe quando o bicho quer ir. Ele entrou no carro dela. Foi uma escolha dele", acredita. Se assim for, o cão aleijado escolheu, inexplicavelmente, a nova morada ao lado de uma treinadora de atletas paralímpicos. Para a ex-dona, nada mais claro: os animais seguem seus instintos e conhecem bem os seres humanos.

Por isso, ela está sempre atenta às reações deles. Ao chegar ao abrigo, o visitante é logo recebido por vários cães, que passam o dia soltos pelo local. Por vezes, eles aguçam o faro e não deixam um certo desconhecido se aproximar. Eliane e a filha, Helena, nem titubeiam e logo creem nas mensagens dos cachorros e dispensam a pessoa.

E essa afinidade com a natureza é algo que Eliane leva muito a sério. Tem muito cuidado com os desejos deles. Por isso, não entrega a qualquer um nenhum dos seus cachorros. Avalia precedentes dos candidatos. Se um cãozinho tem histórico de ter apanhado de crianças, por exemplo, ainda que consequência de uma forma desajeitada de tratar o animal, não existe a menor chance de ele ser encaminhado novamente para um lar com donos de pouca idade.

Outra regra também é levada muito a sério. Animal adotado e depois devolvido nunca mais arredará as patas do lado de Eliane. A justificativa é simples e clara: o animal não merece ser rejeitado mais uma vez, ainda mais que, se deixou os braços acolhedores dela, jamais será para ser destratado novamente. É o caso de Dalila. A fila que nunca sai de perto da dona do abrigo foi devolvida tempos depois de ser levada por um novo dono. Ele não entendeu que a cadela, quase cega, acaba atacando as pessoas por não enxergar bem. Certo espisódio, na tentativa de defendê-lo, não o reconheceu e avançou nele. Não teve segunda chance e ela foi levada de volta ao antigo lar.

Eliane saiu em defesa da cachorra. Garante que a cadela de grande porte tem coração amável. É um pouco temperamental e enxerga mal, verdade. E como não compreendê-la, se ela própria enfrenta a mesma realidade de não contar mais com os olhos?

A única vez que a triagem foi mais apressada foi quando Eliane adoeceu. Sem a força dela, ficou difícil cuidar de matilha tão numerosa. Era preciso diminuir gastos e aliviar o trabalho. A filha agilizou e fez uma feira. Acabou doando quase três centenas de pets.

Leia a reportagem completa na edição n; 498 da Revista do Correio.

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