Medicina
Guerra contra a esclerose múltipla
Enquanto a ciência ainda busca as causas e a cura para a doença, novos medicamentos garantem mais qualidade de vida aos pacientes
Por Flávia Duarte
Enfrentar a esclerose múltipla é combater um inimigo muito próximo: o próprio organismo. Tão intrínseco que fica impossível entrar na luta sem se ferir e provocar prejuízos a si mesmo. A forma é metafórica, mas não deixa de ser uma representação do que enfrentam os pacientes que convivem com uma doença autoimune, que ataca a mielina (proteína que reveste as fibras nervosas e permite a condução dos impulsos nervosos), provocando inflamações e, com o tempo, a degeneração dos tecidos do sistema nervoso. O resultado pode ser a perda progressiva dos movimentos do corpo, do equilíbrio, o comprometimento da visão, da fala, da memória e de tantas outras atividades que garantem a autonomia do corpo.
A enfermidade ainda não tem cura. Há o controle da doença somado aos mistérios da genética que fazem com que uns respondam melhor ao tratamento e possam conviver anos sem o mal se manifestar. "A doença nasce da relação entre o sistema nervoso e o sistema imune. Ambos ainda são grandes desafios para a ciência. É necessário saber em que momento o sistema imune começa a agredir a mielina como se ela fosse estranha. Por quê? Seria um vírus parecido com essa proteína? Seria um defeito genético? Quais fatores do ambiente que realmente podem desencadear a esclerose múltipla e quais poderiam proteger? A partir das respostas a essas perguntas, poderia se procurar a cura da doença", esclarece a médica Elizabeth Regina Comini Frota, coordenadora do Departamento Científico de Neuroimunologia da Academia Brasileira de Neurologia.
As medicações disponíveis têm objetivo de evitar as crises que provocam lesões nas células nervosas. Sequelas muitas vezes irreversíveis e, por tantas outras, limitantes. São surtos motores, como paralisias; ou sensitivos, que provocam dormências, por exemplo. Para amenizar os riscos de tê-los, só mesmo recorrendo a injeções aplicadas diariamente, em dias alternados ou ainda uma vez por semana. Elas oferecem uma proteção de 25% a 30% contra as crises e podem provocar uma série de efeitos colaterais, como dores de cabeça e baixa do sistema imunológico, por exemplo.
Por isso, as pequenas conquistas dos pacientes são muito importantes. Graças a uma luta conjunta por direito a mais qualidade de vida, eles se mobilizam por alguns ganhos enquanto a ciência não pode oferecer nenhum conforto definitivo. Uma das vitórias foi a inclusão de medicação oral, o fingolimode, na lista de remédios disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde nas farmácias de alto custo de todo o país. A previsão é que o medicamento comece a ser distribuído ainda no primeiro semestre deste ano. Para o neurologista Eber Castro Corrêa, esse é um grande passo, uma vez que a droga é mais fácil de ser administrada por ser apenas um comprimido. "Além disso, oferece 58% de proteção. Os registros mostram que os pacientes podem ter um surto a cada cinco anos. Com as outras drogas, ele está mais propenso a ter um surto a cada dois", explica o médico.
Durante a crise, a mielina é destruída e reconstruída com uma qualidade inferior. Na prática, os impulsos elétricos cerebrais passam a ser transmitidos com mais dificuldade e, por isso, o corpo poderia entrar em colapso aos poucos. "Há outro componente da esclerose, a neurodegeneração. Há uma perda progressiva de axiônios e neurônios, que são destruídos de forma precoce e levam a uma deficiência cognitiva e ao aumento da incapacidade", acrescenta o médico.
A droga fingolimode é usada como primeira medicação indicada para a esclerose nos Estados Unidos e na Europa há pelo menos sete anos. No Brasil, ela chegou há três, no entanto, só tinham acesso os pacientes que podiam desembolsar mais de R$ 7 mil por cada caixa com pílulas disponíveis para apenas um mês; os que conseguiam o pagamento pelo plano de saúde ou por meio de decisão judicial. Agora, a medicação será distribuída gratuitamente mediante relatório médico. Serão priorizados os casos em que a pessoa não responde bem ao uso das outras drogas existentes. "Isso é ótimo. O paciente tem mais comodidade para fazer o tratamento e o índice de desistência registrado é de apenas 10%, enquanto no tratamento com injeções chega a 40%", comenta o neurologista.
A conquista é enorme para um caminho com tão poucas opções. De resto, resta apostar nos estudos futuros, como a de células-tronco com habilidade para originar novas células que fabricam a mielina. "As perspectivas futuras são muito animadoras. As pesquisas apontam vários fatores que desencadeiam a doença. Em relação ao tratamento, a melhor perspectiva é o foco na molécula que impede a recuperação da mielina. A medida que se desenvolvem bloqueadores dessa molécula, é possível que tenhamos, nos próximos anos, um medicamento capaz de controlar a degeneração. Outra perspectiva importante é em relação à influência dos hormônios femininos na capacidade de regeneração", esclarece a médica Elizabeth Frota.
Saiba mais
Em geral, os primeiros sintomas da doença aparecem entre 15 e 45 anos.
Pais com esclerose múltipla têm de 1% a 1,5% de chance de terem filhos com a enfermidade.
Em todo o mundo, são cerca de 2 milhões de pacientes com esclerose. No Brasil, estima-se que a patologia atinja 30 mil.
Entre os brasileiros, cerca de 15 mil estão em tratamento. Os demais não sabem que têm esclerose ou tratam a doença de forma errada.
Uma pessoa demora, em média, sete anos até conseguir o diagnóstico correto.
Medicina
Entrevista//Roberto de Magalhães Carneiro de Oliveira
"O comportamento da doença pode variar com o tempo"
A revista Multiple Sclerosis publicou um estudo acompanhado, por 11 anos, pelos comitês Americano e Europeu para Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla em Boston, Massachusetts. O resultado revela que o tratamento precoce com betainterferona-1b diminui os efeitos das complicações motoras e sensitivas dos pacientes em estágio inicial da doença. Para falar sobre o tema, a Revista conversou com o médico Roberto de Magalhães Carneiro de Oliveira, coordenador da Neurologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (SP).
O que traz de inédito essa pesquisa se a betainterferona-1b está no mercado há 25 anos?
Esse foi o primeiro estudo longo com pacientes na fase inicial da doença, que mostrou benefícios no tratamento precoce com a beta-interferona-1b. É importante ressaltar que o fato dessa droga estar há tanto tempo no mercado somente reforça sua eficácia na prevenção de surtos por causa da doença.
Como agem as medicações mais modernas e eficientes, disponíveis hoje para o tratamento da esclerose múltipla?
Quando se fala em medicações mais modernas, não estamos falando necessariamente de medicações mais eficientes. Precisamos entender o tratamento da esclerose múltipla como ele é preconizado hoje no mundo inteiro. Em primeiro lugar, ele deve ser individualizado, ou seja, para cada paciente é necessário avaliar qual a estratégia mais adequada. Isso inclui o medicamento de maior eficácia e melhor aderência, sem esquecer do princípio hipocrático primo non nocere (primeiro não agredir). Não é interessante expor o paciente a um remédio que pode favorecer o aparecimento de câncer ou infecções fatais, por imunossupressão, indicando que, com essa droga, ele não terá surtos. As medicações mais novas agem de diferentes formas e a maioria delas é imunossupressora. Podemos analisar o caso do fingolimode, que retira as células de defesa de circulação, prendendo-as nos linfonodos. Costumo dizer que é como retirar a polícia das ruas, deixando-as dentro das delegacias esperando que os bandidos vão até lá para serem presos. Não por acaso, nos estudos pivotais dessa droga ocorreram casos de melanoma e câncer de mama, além de zoster sistêmico. A teriflunomida, outro medicamento por via oral, tem na sua bula nos Estados Unidos, a advertência da possibilidade de causar insuficiência hepática fatal.
Por que as mulheres adultas são consideradas o maior grupo de risco?
A incidência da esclerose múltipla é maior em mulheres (seis para cada homem), a partir da terceira e quarta décadas de vida. Muitas vezes, a doença se manifesta mais cedo, mas o diagnóstico é feito tardiamente.
É possível com o tratamento impedir a progressão da doença?
O advento dos imunomoduladores mudou a história da esclerose múltipla há mais de 20 anos. Antigamente, ter um diagnóstico desse era quase uma sentença de incapacidade física em 10 anos. Hoje, vemos pacientes com 20 e tantos anos de doença levando a vida com independência e poucas limitações. É importante ressaltar que cada caso é diferente do outro, e, mesmo que em um único paciente, o comportamento da doença pode variar com o tempo. A patologia pode começar de maneira mais tranquila e ficar agressiva ou começar agressiva e responder bem ao tratamento. Hoje, dispomos de medicamentos de primeira linha, os imunomoduladores. Caso eles não surtam o efeito esperado, vamos para os de segunda linha (natalizumabe, daclizumabe, alentuzumabe, fingolimode, teriflunomida). Se ainda assim não houver controle, aí então passamos para os de terceira linha (imunossupressores como ciclofosfamida) ou até mesmo paratransplante autólogo de medula óssea.
Quais são os desafios hoje para descobrir a causa e a cura da esclerose?
A esclerose múltipla, ao que sabemos hoje, é uma doença multifatorial, que envolve predisposição genética, alterações ambientais (como deficiência de vitamina D) e infecções virais. Quando se tem muitos fatores associados, entendemos que a doença seja consequência da somatória deles.
Necessariamente, o paciente de esclerose terá mais perdas motoras e cognitivas quanto mais tempo viver?
Isso dependerá da atividade da doença e da resposta ao tratamento.
Quais são as expectativas para o futuro em relação à doença, em termos de pesquisas e novos medicamentos?
Temos boas perspectivas de novas drogas para a esclerose múltipla. Hoje, falamos em pacientes livres da doença e pacientes sem evidência de atividade da doença. Devemos ter medicamentos mais eficazes e seguros dentro de alguns anos.
Por que ainda é tão difícil diagnosticar a patologia?
O passo mais importante no diagnóstico é suspeitar da doença. O diagnóstico demora, na maioria das vezes, por conta de consulta a profissionais de outras especialidades, que acabam por desconhecer os sintomas variados da esclerose múltipla.
O diagnóstico tardio é um problema do Brasil?
Não somente no Brasil, como em todo o mundo. Como para chegar ao diagnóstico correto da doença é necessário realizar exames de imagem (ressonância magnética) e laboratoriais, há também uma limitação econômica para o público de baixa renda.
Além da medicação tradicional, há tratamentos paliativos e alternativos que comprovadamente trazem qualidade de vida aos pacientes com esclerose?
Quando se pesquisa sobre tratamento da esclerose múltipla, é possível encontrar tratamentos alternativos com picada de abelha, ingestão da própria urina, injeções de sangue no músculo e doses ultraelevadas de vitamina D. Não há comprovação científica de eficácia de qualquer uma dessas possibilidades. Já atendi a pacientes com oito vezes o limite normal de vitamina D e apresentando surto intenso. Diga-se de passagem, a vitamina D em doses elevadas pode levar até à morte. O consenso no tratamento é de que pacientes com níveis abaixo do normal devem receber suplementação. Quanto às outras formas de tratamento, como a psicoterapia e a acupuntura, entendo que são complementares ao convencional. Acredito que não é possível substituir um pelo outro.