O rompimento das barragens de Mariana (MG) suscitou um verdadeiro exército de voluntários. Pessoas de todas as partes do país se prontificaram a ajudar, seja limpando a imensa quantidade de lama, seja doando roupas, comida ou prestando atendimento médico às vítimas. Cada vez que uma tragédia acontece, o tema do voluntariado vem à tona com força. Para alguns, porém, o altruísmo é uma constante, uma missão que transcende fronteiras. De acordo com as principais agências de turismo de Brasília, o "intercâmbio voluntário" é uma modalidade ainda pouco difundida entre os brasileiros, mas em franco crescimento.
Eduardo Frigo, gerente de produtos da CI ; Intercâmbio e Viagem, explica que há diversas opções para os interessados em prestar ajuda além-mar. De brincar com crianças em orfanatos a limpar jaulas de leões, há serviço para todos os gostos e capacidades. Assim como um intercâmbio convencional, há como escolher a duração da viagem e o destino. Mas as semelhanças terminam aí: no intercâmbio voluntário, a ideia principal não é apenas conhecer um lugar novo, mas se envolver com os problemas locais. "Há a exigência de um certo nível de idioma, geralmente inglês, e outras coisas que qualificam o participante a se engajar ou não em um projeto", detalha Frigo. "Não há limite de idade, mas, se o trabalho for no meio da savana africana, uma pessoa mais velha pode não se sentir bem com o calor."
Cerca de 70% dos interessados que procuram a agência em que Frigo trabalha estão na faixa dos 18 aos 24 anos. Desses, a maioria (65%) é mulher. Independentemente do perfil da pessoa interessada, o primeiro passo é ter uma conversa detalhada com o consultor. Informações sobre o local escolhido, o tipo de trabalho oferecido e o grau de envolvimento (inclusive emocional) são decisivos antes de fazer as malas. "No caso de uma pessoa que queira trabalhar com crianças, o consultor vai ser o responsável por orientar a escolha entre um orfanato de crianças com HIV ou uma creche. Se a pessoa achar que o primeiro caso é ;muito pesado; para ela, pode escolher outra atividade." Tudo vai depender da empatia individual.
Luiz Gustavo Corrêa Sousa, diretor regional de Brasília e Goiás da World study, reforça que ainda há resistência entre os brasileiros quando o assunto é trabalho voluntário no exterior. A modalidade de viagem não faz sucesso, nem aqui nem no estado vizinho. "Temos, pelo menos, 150 estudantes por ano. Menos de 3% é daqui", estima. A procura é até razoável, segundo ele. O problema é a hora de "bater o martelo": muitos interessados até fazem o orçamento, mas nunca mais aparecem na agência. "Na maioria das opções, é preciso pagar o que as escolas chamam de doação, que é para custear a hospedagem e a alimentação", explica. "O brasileiro não aceita isso. Muitos perguntam: ;Além do meu tempo, ainda vou ter que pagar?;." Em contrapartida, Maria Beatriz Vilela, diretora de marketing da Aiesec Brasília, comenta que o intercâmbio de curta duração para estudantes universitários é um sucesso. O programa de intercâmbio voluntário e social Cidadão Global, por exemplo, já enviou mais de 80 intercambistas este ano para realizar trabalhos na maioria dos países da América latina, bem como países na África, na Ásia e no Leste Europeu. No fim, o estudante recebe um certificado do trabalho realizado. "O foco é desenvolver jovens líderes", resume.
Ricardo Frota, médico psiquiatra e palestrante sobre prevenção de saúde mental, explica que os benefícios do trabalho voluntário vão além da sensação de dever cumprido. Segundo ele, ajudar os outros faz com que o indivíduo se sinta, verdadeiramente, parte da sociedade. "É cientificamente comprovado que, quando temos a disponibilidade de querer ajudar, o mesmo sentimento que entregamos é o que recebemos de volta, de uma forma que impacta nossa mente." Refletir sobre os próprios comportamentos e formas de pensar é o principal ganho, segundo o médico.
A sensação de angústia, porém, também pode acontecer e é comum entre os que encaram o intercâmbio voluntário. Saber que a ajuda não será capaz de mudar aquela realidade de maneira definitiva pode causar estresse, frustração e impotência. "Temos que ter consciência de que não vamos mudar o mundo", alerta o médico. "Coletivamente, essa chance aumenta, mas isso não quer dizer que uma parcela de pessoas vai mudar uma realidade." A frustração faz parte, avalia Ricardo Frota. O sentimento indica que é preciso dar continuidade aos trabalhos e sinaliza a necessidade de autocrítica: não é todo mundo que se dispõe a ajudar os outros, logo, por menos que tenha durado a experiência, fez diferença para alguém.
Olhos de missionário
Felipe Fontinele, 31 anos, é um fotógrafo especializado na cobertura de casamentos. Ainda que seu trabalho inclua a observação do ambiente, o registro do momento e um olhar rápido, ele sentia necessidade de uma imersão, um evento em que nada estivesse preparado, programado. Em outubro de 2014, Fontinele resolveu aceitar o convite da Terceira Igreja Batista de Brasília para conhecer um pouco mais de perto outra vertente da profissão: o fotojornalismo. A instituição realiza missões constantes ao Haiti, onde mantém um orfanato. "Achei que seria uma boa oportunidade para conhecer esse tipo de fotografia e também outros povos", reforça.
Felipe, então, fez as malas para a viagem de uma semana para o país caribenho. Lá, conheceu o campo missionário, engajou-se nas atividades do orfanato e, claro, tirou fotos. Ele integrou a equipe responsável pelo apoio emocional às crianças. Profissionais de saúde, como pediatras, cirurgiões, dentistas e psicólogos, compunham o restante da comitiva e garantiam o atendimento aos pequenos.
Antes de embarcar, o fotógrafo pesquisou rapidamente sobre seu destino. Ainda assim, o choque cultural foi grande. "Tinha lido que o país foi devastado por um terremoto, que a situação era precária, com falta de água. Mas já há muita coisa reconstruída. O problema mesmo é o saneamento básico", analisa. "Claro que também há pobreza no Brasil, mas vivi a vida inteira em Brasília e nunca tinha visto algo parecido." Tanta pobreza teve um efeito imediato em Fontinele: de repente, apenas ter um teto e água barrenta para escovar os dentes (como era o caso) já era motivo suficiente para se sentir profundamente grato. "Foi a primeira vez que fiz algo parecido e posso dizer que mudou minha vida. Hoje, sou outra pessoa devido a essa experiência. Ganhei mais do que eles."
Em fevereiro deste ano, Felipe Fontinele sentiu, novamente, vontade de ajudar. Desta vez, separou 15 dias para um trabalho voluntário na Índia. "Fui totalmente despreparado para o que ia ver", resume. "A Índia é um país muito menor e com muito mais gente que o Brasil. Tirando as ruas das embaixadas e das pessoas ricas, em todo canto tem alguém morando. Isso é muito doido, não poder fazer nada para ajudar a não ser dar carinho." Lá, o fotógrafo conta que viveu "a Índia pobre", oposta à colorida e exótica Índia dos turistas. Viagens nos famosos trens abarrotados de gente, por exemplo, eram rotina.
O olhar de fotógrafo registrou o que, para Felipe, foi um dos momentos mais marcantes da viagem. No centro da cidade, em meio a uma multidão, ele viu um garoto que chorava copiosamente. O tempo de tirar a foto foi o tempo que o menino levou para desaparecer para sempre no mar de gente indiano. "Não sei o motivo do choro, mas, pelo menos, consegui registrar." Para se preservar emocionalmente, ele conta que tentou, até onde pôde, não se envolver com o drama local. Logo descobriu que a tarefa era nada menos que impossível. "Uma criança que o abraça pensando que você talvez nunca mais volte dói no coração", justifica. Mesmo assim, ele já programa muitos outros intercâmbios voluntários. "Todo mundo precisa fazer uma viagem como essa. É uma programação de vida."
Leia a reportagem completa na edição n;550 da Revista do Correio.
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