Revista

O poder do sutiã

Flávia Duarte
postado em 17/01/2016 08:00
Sempre brinco que se não tivesse nascido mulher, certamente seria um travesti. Sem entrar na discussão dos transgêneros, admiro o exagero, as cores, o realce fake de quem enaltece as formas e os atributos femininos, sempre no superlativo. Desde criança, sempre gostei de maquiagem e levava, em cada um dos dedos da mão, anéis baratos que acompanhavam balinhas mais ordinárias ainda. Nunca dispensei bolsa, óculos escuros e pulseiras na hora de brincar. Aliás, ter o privilégio de me vestir de mulher, até hoje, é, para mim, uma deliciosa brincadeira.

Respeito quem não tem paciência para se montar diariamente. Sorte de quem nasceu com beleza natural transbordante que dispensa corretivo pela manhã. Não questiono em nada as mulheres que acham que se depilar é resultado de uma sociedade machista e opressiva. Mas eu, sim, fico oprimida com as pernas e as axilas cheias de pelo. O visual limita meus movimentos e minha escolha de usar saias ou vestidos. Assim, também é direito meu me livrar do que acho que não deveria me pertencer.

Considero louvável a iniciativa das mulheres, em 1968, em frente ao Atlantic City Convention Hall, em New Jersey, que protestaram diante dos padrões de beleza impostos pelos concursos de miss da época. Em frente ao local onde acontecia o evento para dar nome à mais perfeita mulher da América, elas jogaram alguns objetos simbólicos do universo feminino no lixo, entre eles o sutiã. Alguém sugeriu radicalizar e atear fogo em tudo. A prefeitura não autorizou atitude tão incendiária, mas até hoje o episódio ficou conhecido como a ;Queima dos sutiãs;, que, na verdade, nunca aconteceu.

Ainda bem! Bendito o inventor dos pós, batons, cílios postiços, bijuterias e, claro, do abençoado sutiã. Contam que a jornalista e escritora australiana Germaine Greer declarou certa vez, também nos anos 1960, que ;o sutiã é uma invenção ridícula;. Eu me recuso a concordar. Aliás, acho que em tempos de discussões feministas cada vez mais acaloradas, essenciais e pertinentes, o sutiã pode ser visto como um objeto de emponderamento.

Usa quem quer. Estamos livres para desenhar o corpo que desejamos. Isso não deixa de ser uma inquestionável fonte de poder. No livro O amor acaba, Paulo Mendes Campos define, sabiamente, que ;Toda mulher é artesã de si mesma;. E ter as escolhas respeitadas é um passo fundamental para garantir esse direito de ser mulher.

Eu opto pelo sutiã, ao contrário, talvez, das feministas daquele tempo, que suegeriram queimá-lo. Acho que a peça é uma das mais poderosas do nosso armário. Ele permite que você molde seu corpo e que use a roupa que desejar. Com tudo no lugar. Não falo aqui de escolher a lingerie pensando no outro, mas em si mesmo. Ter uma roupa íntima que valorize as formas e disfarce os defeitos dispensa elogio alheio. Basta a aprovação diante do espelho, acredite.

Qualquer mulher se sente mais segura se souber que a lingerie está em dia. Pelo menos eu acho. Tive um amor que dizia que mulher vestida de calcinha e sutiã fica mais sexy do que despida eles. Compartilho a mesma opinião. Acho que o já citado Paulo Mendes Campos também. No mesmo livro, ele fala, na crônica Olhar da mulher, sobre o contrassenso de algumas tribos que, nos rituais de fecundação, vestem roupas em vez de tirá-las.

Eu também defendo o vestir-se para sentir-se linda. Para si e para o outro, se assim desejar. No fim do ano, propus a quatro amigas, bem-casadas, já passadas dos 35 anos, que o nosso tradicional amigo-oculto fosse um troca-troca de lingerie. Uma delas imediatamente franziu a testa. Não sabia comprar roupa íntima nem para ela, que dirá para outra mulher, me disse. Não a deixamos desistir da tarefa. Com ela, fui a uma loja especializada. Diante do espelho, a vi descobri uma mulher que há tempos não reconhecia. Com seus defeitos e qualidades. Formas exibidas e escondidas pelos sobreviventes sutiãs, que quase foram queimados um dia, pobrezinhos. Ela gostou da brincadeira. Um mês depois, chegava a meu WhatsApp a seguinte mensagem: ;Você criou um monstro. Gastei uma fortuna em lingerie;. Eu ri. Feliz por ela. Feliz por mim e por todas as mulheres que podem decidir usar o que bem entenderem, até mesmo uma horrenda calcinha bege.
Flávia Duarte (interina)
flaviaduarte.df@dabr.com.br

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação