Jornal Correio Braziliense

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Quatro vezes Brasília 2

Numa homenagem aos 56 anos da capital do Brasil, parte da equipe da Revista monta um mood board particular com referências de um lugar que não é só um lugar: na verdade, é um caso de amor. Nascidos em décadas diferentes, cada um a seu tempo e a seu modo, descobrimos que há muito em comum nas lembranças e nas vivências, mesmo entre gerações distintas

QUEM
Gustavo T. Falleiros
Nascido em Brasília em 1979
Criado nos pilotis da Asa Sul
Mãe carioca e pai mineiro

Apreciar Brasília sempre foi uma espécie de jogo de se colocar na pele dos outros. À medida que ia aumentando meu universo de referências, a brincadeira ia ficando mais e mais interessante. Você ficava na companhia de pessoas muito inteligentes. Pensava assim: esse pôr do sol é a repetição daquele presenciado por Lucio Costa, embora na época dele só houvesse potencialidade no terreno intocado. Depois vieram os olhos de Darcy Ribeiro, de Anísio Teixeira, de Victor Nunes Leal, de João Filgueiras, de Claudio Santoro, de Dulcina de Moraes. Com todos eles, tentei enxergar a essência de Brasília naquilo que ninguém descreveu melhor do que Mário Pedrosa: o nosso sonho de modernidade, feito com a melhor matéria-prima disponível. Até por isso, durante muito tempo, meu lugar favorito era o câmpus da UnB. Hoje, sinto esse misto de felicidade e orgulho quando visito a Banca da Conceição, na 308 Sul.

Depois, bem depois, troquei as lentes e passei a ver com mais clareza Brasília antes de Brasília: um quadrilátero goiano propício à implantação da capital, precocemente demarcado pela missão Cruls no século 19. Passei a imaginar o homem original em sua dimensão cerratense, na trilha aberta por Paulo Bertran. E também a apreciar o que da natureza restava. Daí a Brasília desfraldada, que vai além mesmo do Entorno, para abraçar o tesouro da Chapada dos Veadeiros. Mas não preciso ir longe não. Da minha janela, se esticar o braço, alcanço um abacateiro carregado, sempre visitado por miquinhos. Dez minutos a pé e estou no Parque Olhos D;Água. Ou, se caminhar na direção oposta, alcanço a margem do Lago Paranoá bem no Calçadão da Asa Norte.

A maioria dos cenários da minha juventude não existe mais, com exceção do Cine Brasília e do Beirute da Asa Sul. Falo sem nostalgia, pois as histórias sobrevivem ao desaparecimento físico dos bares, das casas noturnas e dos equipamentos públicos inexplicavelmente relegados (como o Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul). Noites barulhentas, politicamente incorretas e sem hora para acabar. O rolê começava na Segunda Lounge, do Gate;s Pub (403 Sul), e terminava mansamente no domingo, no cinema da Academia de Tênis. Entre um ponto e outro, um sanduíche onírico cujos ingredientes variavam. Podia ser jazz nas quintas-feiras do Schloss (309 Norte); chorinho às quartas, na antiga sede do Clube do Choro; rock;n;roll às sextas, no Porão do Rei (204 Norte); balada eletrônica nos sábados, no Orange Club (Lago Sul). A base de apoio para os deslocamentos era o 2; Clichê (107 Norte), famoso pelas cigarrilhas e doses de Gabriela.

Hoje, meus lugares são os que favorecem encontros, os fortuitos e os planejados. Muitas vezes, são singelos, sem qualquer atrativo especial e, portanto, vou omiti-los. Mas, se puder dar indicações, gostaria de mencionar os fins de tarde no Clandestino Café, virado para o cerradão da 413 Norte. Tem também a vadiagem literária nos almoços do Sebinho (408 Norte) e as sempre surpreendentes noites burlescas no Usina, no Setor de Oficinas Norte. A transgressão do Conic ainda está aí. Mas, pensando bem, me parece que a compreensão mais pura da cidade é muito solitária e se conquista a pé, procurando captar a música sibilante que escapa entre folhagens e galhos retorcidos.