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Quatro vezes Brasília 3

Numa homenagem aos 56 anos da capital do Brasil, parte da equipe da Revista monta um mood board particular com referências de um lugar que não é só um lugar: na verdade, é um caso de amor. Nascidos em décadas diferentes, cada um a seu tempo e a seu modo, descobrimos que há muito em comum nas lembranças e nas vivências, mesmo entre gerações distintas

Flávia Duarte
postado em 17/04/2016 08:00

QUEM
Flávia Duarte
Nascida em Brasília em 1980
Pais mineiros e irmãos brasilienses
Criada no Guará

O meu céu de Brasília ; aquele famoso em todo o mundo pelo horizonte alaranjado e sem barreiras que impeçam a visão do que seria quase um mar nas alturas ; é enfeitado por bolinhas de sabão. A ordinária mistura de água com detergente barato deixava o meu cenário infantil mais lúdico, mais mágico. Você podia comprá-las no Parque da Cidade Sarah Kubitschek ou no zoológico. Não importava. Queria vê-las libertas das garrafas de plástico para que conseguissem chegar ao alto.

O vento que sopra na cidade é parte das minhas lembranças. Era ele que movia o catavento colorido que meus pais me presenteavam no fim de semana. O vento que, até hoje, vejo criar suaves furacões de terra avermelhada. Agora, acho bonito o movimento da natureza, que levanta poeira desse cerrado. Quando criança, porém, me dava medo. O mesmo vento que derruba as flores dos ipês e forma tapetes amarelos ou rosados.


Meu pai me apresentou o Parque da Cidade

Nasci na cidade que tenho orgulho de apresentar como minha. Os pais dos meus amigos da minha idade, todos, vieram de fora. Somos todos um pouco brasilienses de nascença com a alma moldada pelos hábitos do estado natal de nossa família. Agora, meus amigos são pais que criam uma nova geração, totalmente de Brasília. São os pequenos filhos de pais brasilienses natos.

Foi com esses amigos que dividi minha infância nos pilotis dos edifícios de três andares no Guará. Época em que prédio alto era coisa de metrópole e não de cartão-postal planejado previamente. Com eles, fiz motins para desalojar o vigia do prédio e, assim, transformarmos a casa dele em nosso quartel-general, onde pudéssemos planejar nossas brincadeiras. Com esses amigos, escorreguei pelo chão de ardósia, enquanto o mesmo vigia, ameaçado nos pensamentos das crianças, lavava o piso com mangueira. Com eles, quis acampar debaixo do prédio sem grades, vazado e onde era permitido o vaivém de moradores, visitantes e quaisquer passantes.

Ainda moro no Guará. O condomínio é cercado. Ali, só se entra com autorização. As crianças já não têm mais chance de tomar banho de mangueira. Substituíram os jatos d;água durante a limpeza por piscinas aquecidas. Eu jogava queimada, pulava elástico ou amarelinha na rua. Meus pequenos vizinhos agora se divertem na quadra de esportes cercada, com horário definido para ser fechada. Ou então, na brinquedoteca ou na sala de computadores de condomínios modernos.

Delícia mesmo era comprar dindim artesanal feito pela vizinha ou um pedaço de creme ou quebra-queixo vendido pelo Tião, um forte negro que pedalava uma bicicleta azul oferecendo essas gostosuras.

A Brasília em que cresci incluía brincadeiras no castelinho do Parque da Cidade. Os bancos e escorredores de cimento rasgavam a roupa, esfolavam as pernas, mas quem se importava com isso? A construção monarca continua lá, vazia, no mesmo parque que frequento aos fins de semana para fazer caminhadas e tentar manter a forma quase três décadas depois.

Eu e minha irmã éramos fãs do parquinho de areia

A cidade dos clubes foi a que me permitiu fazer parte do grupo de sócios privilegiados do Motonáutica na infância. À medida que ganhava altura, me desafiava a pular em uma piscina maior. Meus pais não ousavam entrar na água, mas, vigilantes, não tiravam o olho de mim nem da minha irmã. Enquanto isso, providenciavam nosso lanche quando a fome batesse. Até hoje, cheiro de batata frita de saquinho me leva direto para aqueles dias de sol.

Ao Motonáutica voltei na adolescência, para pular os comportados bailes de carnaval. Hoje, o clube que eu adorava está abandonado. Espio a estrutura para reavivar a memória. Passo na frente do lugar vez ou outra, quando vou usufruir de outro espaço dessa cidade: o Lago Paranoá. Alugo a prancha de SUP e me aventuro pelo lago inventado, mas de beleza real.

Essa é minha Brasília, que te permite se deparar com uma capivara por aquelas bandas, em determinadas épocas do ano; e, diariamente, com micos surrupiadores na Água Mineral. No Parque Nacional, de águas correntes e geladas, voltei depois de adulta, mas me encantei como se criança fosse.

A capital onde cresci atraía meus familiares mineiros não só pelas obras, conhecidas por todo o mundo, e assinadas por Niemeyer e Athos Bulcão. O roteiro oferecidos a eles incluía uma visita ao aeroporto, que mantinha uma cobertura aberta para quem quisesse ver os aviões levantarem voo. Para quem vivia em cidade do interior, onde não decolam voos comerciais até hoje, o passeio era uma verdadeira aventura.

A cidade que meus pais apresentavam a quem vinha de fora era aquela que podia trazer sorte ao jogar uma moedinha no laguinho que circunda o Palácio da Alvorada. A água estimula a brincadeira entre os turistas e os mantêm a uma distância bem segura de quem manda no país. Subir na Torre de TV era parada obrigatória. Quando ouço som de berimbau, logo sou transportada para aquele cenário. Um desenho que mantenho apenas na minha cabeça. A organização da Torre que conheci já não existe mais. A reformulação do espaço substituiu a desordem divertida, que misturava o cheiro de acarajé, música de capoeira, barracas de roupa hippie e móveis de madeira, por barracas padronizadas, de metal, em uma organização insossa e sem personalidade.

No meu tempo de criança, ir à Rodoviária de Brasília fazia parte da programação de domingos. Meu pai comprava o jornal e, a mim e a minha irmã, era dado o direito de escolher um gibi. A minha preferência era por um exemplar da Turma da Mônica, o que tivesse mais páginas. Assim, a brincadeira seria garantida por mais tempo. Também me recordo de ir uma vez ao Drive-in, quando pequena. Cinema no carro, sobrevivente só por aqui, que revisitei acompanhada, faz poucos anos.

Minha Brasília não tinha as curvas do arquiteto famoso. Mas era feita de retas e quadrados onde eu aprendi a andar de bicicleta. Cidade plana onde dei graças ao céu por não ter que fazer tanto controle de embreagem na hora de aprender a dirigir. A cidade das grandes distâncias, no tempo em que a ponte mais linda do mundo ainda nem era um projeto. Para visitar os amigos bem-nascidos no fim do Lago Sul levava um bocado de tempo, mas não o suficiente para desanimar meu pai a fazer minha vontade. Aprendi a amar a Brasília onde nasci e fui criada. Hoje, sou apaixonada pela cidade onde construí minha vida de adulta e onde espero envelhecer.

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