Revista

A (nem tão) doce preocupação

O persistente sentimento de culpa materna é vivenciado pela mais esclarecida das mulheres. Por quê? O que falta evoluir em nossa cultura para integrar as contradições que envolvem a criação dos filhos?

Juliana Contaifer
postado em 01/05/2016 08:00

O persistente sentimento de culpa materna é vivenciado pela mais esclarecida das mulheres. Por quê? O que falta evoluir em nossa cultura para integrar as contradições que envolvem a criação dos filhos?
Dizem que a culpa da mãe nasce com o filho. Já na hora do parto, vem a dúvida: será que era melhor ter optado por uma cesária? Ou por um parto natural? Será que meu filho vai ficar, em algum nível obscuro da psique humana, traumatizado pelo resto da vida pelo jeito como veio ao mundo? Com as atribuições da vida moderna, será que o filho está sendo negligenciado? Será que ficará marcado pela ausência da mãe que tem que trabalhar? Será que as escolhas são as corretas? Devia matricular no futebol ou no balé? Como escolher a escola? É certo comprar aquela boneca? Será que vai crescer saudável e fazendo boas escolhas?

"Se a criança cresce respeitadora, saudável, inteligente, cheia de sucesso, a criação dos pais foi certinha. Agora, se dá errado, se tem algum trauma, a culpa é toda da mãe", conta a juíza Rejane Suxberger, 42 anos, mãe de Joaquim, 6 anos, e Mariana, 7 meses. Rejane é juíza da vara de violência doméstica e foi, anos atrás, responsável por julgar casos de tráfico de entorpecentes. Foi quando teve contato com várias mães de jovens acusados e descobriu que a falta de uma base familiar forte era constante. "É só quando se tem contato com histórias de pessoas no mesmo nível social que prestamos atenção, acreditamos que pode acontecer com a gente. Conversei com muitas mães que não estiveram presentes, que trabalharam demais, que não acompanharam de perto o que os filhos estavam fazendo e acabaram na Justiça. Eu me cobro muito por conta dessa vivência, pelo que eu vejo muito de perto."

Por trabalhar muito ; fica a tarde e o começo da noite no Tribunal, leva trabalho para casa, espera as crianças dormirem para trabalhar mais um pouco, acorda antes delas na manhã seguinte ou separa mais uma hora antes de sair para trabalhar mais um pouquinho ;, Rejane tem medo de não passar tempo suficiente com os filhos para garantir que cresçam bem, apesar dos dois estarem sempre bem assistidos pela família e por pessoas de confiança da família como a babá Míriam. Sente muita culpa, mas, além de ser apaixonada pelo que faz, considera impossível diminuir o ritmo e a quantidade de trabalho.

"A culpa pra mim é inerente à maternidade. Sinto culpa quando estou no Tribunal, culpa quando estou trabalhando em casa, quando viajo sem eles, quando saio com um e o outro fica em casa. Sinto culpa até quando vou ao cinema. Monitoro tudo por telefone, mas não é a mesma coisa. Eles estão bem, felizes, eu que fico mal. Faço até terapia por conta disso, é uma situação que não tem como resolver", explica.

Para compensar a ausência, dorme por pouco tempo e está em vigília até durante o sono, já que a filha pequena exige atenção. Tem dias que acorda quebrada. Já levou criança doente para o sofá do escritório enquanto trabalhava, tenta dividir o tempo com qualidade para estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Em um período que o trabalho era ainda mais pesado, sentiu-se tão culpada que, ao perder o primeiro dente, aos 4 anos, Joaquim ganhou R$ 100 da fada do dente. "Meu marido que me trouxe para a realidade, o que ele ia fazer com R$ 100? Eu dei uma inflacionada. Entendi que tentar compensar com bens materiais é pior, porque a criança fica frustrada. Tudo o que ela recebe é pouco para o que ela precisa. Minha preocupação é essa, estar junto nos feriados, ter tempo de qualidade com eles", conta.

Rejane explica que se sente responsável não só pela felicidade dos filhos agora, mas pelos adultos que eles vão se tornar. Preocupa-se com o futuro, com formar pessoas do bem. "Tenho vários amigos adultos que questionam a ausência dos pais na infância, que enxergam os reflexos na vida adulta. Eu não posso delegar a educação deles para ninguém ; a responsabilidade é minha", afirma.

E isso tudo porque os filhos de Rejane foram planejadíssimos. Esperou a carreira estar como ela sonhou para ser mãe, para se casar. "Sofri algumas consequências por ter esperado tanto. Tive que fazer tratamento para engravidar do Joaquim. Depois, foram mais quatro anos, duas fertilizações in vitro fracassadas. Quando desisti, a Mariana veio", lembra. Além de sentir a pressão para ser uma excelente mãe, a juíza precisa ser ótima no trabalho, uma esposa fantástica, linda e malhada. "É muito complicado. Eu me sacrifico para fazer tudo, mas tem dia que estou quebrada. Tem viagens que eu faço só para poder dormir. Quando chego ao trabalho, foco tanto para ser produtiva e levar menos serviço para casa que me esqueço até de ir ao banheiro e beber água."

Uma perfeita loucura
No artigo Mãe culpada e a busca da perfeição, a psicóloga americana Karen Kleiman explica que a culpa pode não ser normal. "A culpa é tão invasora que muitas mães, particularmente aquelas que são deprimidas, presumem que é uma parte natural da maternidade, que é algo incontornável atualmente. Judith Warner descreve os apuros que a mulher americana passa em seu livro Perfect madness (2005): ;Muitas mulheres estão se tornando ansiosas e deprimidas porque estão sobrecarregadas e desapontadas. Muitas estão deixando suas vidas serem contaminadas pela culpa porque suas expectativas não podem ser alcançadas, e porque há uma enorme dissonância cognitiva entre o que elas sabem ser o certo para elas e o que elas escutam que é o certo para seus filhos;", afirma.

Karen conta que sempre foi uma mulher independente, mas assim que entrou no mundo da maternidade, teve de recuar. Viu-se presa em uma panela de pressão de ;oportunidades; para jovens mães e seus bebês. Foi quando levou o filho de 4 meses para uma aula de ginástica para bebês. "Sentei no círculo de competitividade neurótica, escutando mães conversarem sobre qual bebê estava fazendo o que e quantas atividades estavam sendo espremidas em seu calendário no qual não sobrava tempo para dormir. Foi a primeira e a última aula que fomos e eu determinei algumas regras para manter a sanidade", lembra. Entre elas, a psicóloga decidiu não se comparar ou comparar seu filho com outros, não se cobrar tanto, pedir ajuda quando precisar, respeitar seus instintos e fazer o melhor que puder.

Como terapeuta, Karen observa que hoje há muito acesso à informação, muitas opiniões e muitas opções, deixando as mães completamente perdidas e indecisas. As propagandas a dizem para fazer uma coisa; a sogra tem suas opiniões; seus grupos sociais a encorajam a seguir um rumo completamente diferente e, acima de tudo, a mãe não sabe o que fazer. "Na hora que ela procura um psicólogo, só precisa escutar que nenhuma dessas coisas é tão importante."

No fim das contas, a psicóloga afirma que as mães acabam adoecendo com essas expectativas de perfeição. Não só de pressões externas, mas talvez por uma pré-disposição biológica ou de personalidade, e até por algum trauma. "Algumas mulheres afirmam estar cansadas do mito da mãe perfeita que está gravado nas suas mentes obsessivas e é confirmado pelo mercado, mas continua persuasivo, e vemos as consequências dessa pressão todos os dias. As mães precisam escutar que é ok seguir seus instintos e que é ok cometer erros", aponta.

Leia mais na edição n; 572 da Revista do Correio.
%u3000

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação