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O mundo fashion não está livre de discussões acaloradas sobre racismo

A apropriação cultural também é um assunto que surge constantemente no mundo da moda. Entenda o debate

postado em 12/06/2016 08:00
Bastidores de um desfile da Adama Paris, grife criada pela senegalesa Adama Amanda Ndiaye
A indústria da moda choca e provoca a sociedade, intencionalmente ou não. Entra em tabus e sempre gera discussões acaloradas sobre os temas mais delicados. Um exemplo: racismo e inclusão racial. Muito se comentou sobre o aumento da presença de modelos negros nas últimas semanas de moda de São Paulo. Em princípio, o fato foi saudado como um avanço. Porém, divergências não tardaram a surgir.

"Nós definitivamente não temos uma mudança", crava Nátaly Neri. Estudante de sociologia e youtuber com mais de 86 mil seguidores, ela mantém uma postura bastante crítica no canal Afros e Afins. Seu foco é a autoestima das mulheres negras, sempre alijadas da indústria da moda ; não como modelos, mas como produtoras e consumidoras. Segundo a militante, o número de modelos negros é ínfimo comparado à presença de profissionais brancos. "Eu conhecia quase todos os negros que estavam presentes lá. Eu conheço pessoas com projetos incríveis que movimentam moda e beleza, e que não estavam lá como convidados nem como modelos, nem como produtores, nem de forma alguma."

Nátaly traz uma perspectiva fresca ao falar sobre o termo étnico dentro do universo da moda. "Em primeiro lugar, a gente tem que abolir a ideia do étnico. Quando você pensa em étnico em termos de moda, é o negro, o indígena, é tudo aquilo que não seja europeu, que não seja norte-americano." Para ela, essa produção "fora do centro" é caricaturada como "criativa". "Eles vão aos guetos e periferias para pegar referências do funk, das religiões de matriz africana, dos povos indígenas. Depois, levam para os centros de consumo e fazem com que elas sejam produzidas, consumidas e divulgadas pelo público branco", denuncia.

No Brasil, quando se fala em grupo étnico, logo se pensa em negros e indígenas. A ironia, aponta ela, é que esses grupos não fazem parte do circuito movimentado pelas maisons de São Paulo. "Acho que esse é um movimento muito leviano. Sugar essas pessoas até onde der e, depois, produzir tendências que descaracterizam os significados das coisas e não geram nenhum retorno financeiro (às fontes originais)." A moda carrega um sentido simbólico ao trazer uma historicidade e ao tentar traduzir, de alguma forma, determinados ideais e conhecimentos acumulados de um grupo para outro.

A questão é ainda mais aguda quando a apropriação avança sobre culturas tradicionais. "Quando você coloca isso numa esfera como a da moda, ocorre uma completa banalização de todos esses elementos. Tornam-se mercadorias. Ainda que haja uma intenção de valorização da estética negra, isso acaba se perdendo ; a legitimidade estaria na autointerpretação. Nátaly defende que não há como encarar o étnico como algo positivo ; pelo menos quanto os "produtores" não tiverem ligação com os espaços onde essas culturas se originam.
Turbante pra quem?
Jaden Smith (D) na campanha da Louis Vuitton: personalidade negra referência de estilo
A historiadora Joelma Rodrigues, coordenadora do Centro de Convivência Negra (CCN) da UnB, também vê criticamente o fenômeno da apropriação cultural, ou seja, o uso indevido de símbolos, da estética, ou de qualquer produção de um determinado grupo étnico por outro grupo étnico. "Nada que um povo produz milenarmente é sem propósito. A moça branca de turbante está linda; a negra não está linda, porque não é bonito ser negro na nossa sociedade." De acordo com Joelma, o turbante, por exemplo, tem uma série de significados para os povos negros. E esses significados são esvaziados quando outro grupo se apropria dessa estética. "Cadê o aporte cultural disso? A banalização, o esvaziamento de sentido que é o problema", elucida.
A youtuber Nátaly Neri é bastante crítica quanto ao rótulo Ícones fashion, como Jaden Smith, que, inclusive, protagonizou uma campanha da Louis Vuitton, são importantes para fortalecer a autoestima do indivíduo negro, minada ao longo dos séculos. "É fantástico porque dá visibilidade. É uma forma de combater o racismo também. A estética também é política", defende a coordenadora do CNN. Já para Nátaly Neri, tem-se aí um outro patamar do que seria um orgulho negro, desta vez ligado ao dinheiro (lembrando que, no Brasil, a população negra é predominantemente de baixa renda).
Jaden Smith, ou mesmo a cantora Beyoncé, são pessoas extremamente ricas, que têm uma lógica racial típica dos Estados Unidos. "É poderoso ver negros consumindo, subvertendo a lógica social vigente, que é a da pobreza, só que, por outro lado, que imagem de negro de sucesso nós estamos criando?", questiona a youtuber. Para ela, apesar da questão ser complicada, não traz um ponto necessariamente ruim. "O sucesso da negritude não pode ser pautado no consumismo desenfreado, mas, sim, em ter uma identidade bem construída, um orgulho inato, de saber quem você é, dos potenciais que você sabe que tem a desenvolver.
CORPO E ALMA - As designers Thársila Tostes (E) e Rachel Seabra são exemplos de uma produção preocupada com a identidade. Elas são donas da Oguê, uma marca de vestuário.
Enquanto isso, nas passarelas...
A modelo Wizy Marques vê com otimismo o mercado de trabalho para modelos negrosExiste um interdito no mundo da moda. Pelo menos é o que Nátaly Neri percebeu em suas passagens pelos grandes eventos do gênero. O tema racismo permanece incômodo. "O que acaba ocasionando um ciclo gigante com as mesmas modelos negras, que se revesam em todos os desfiles, não havendo aí diversidade ou valorização da beleza brasileira", critica.

Uma feliz exceção, de acordo com Nátaly, ocorreu na última edição do evento paulista Casa de Criadores ; foi o desfile do estilista Isaac Silva, que compôs o casting quase todo com negras. "O quão incômodo deve ter sido para algumas pessoas ver apenas duas brancas desfilando num desfile majoritariamente negro?", provoca.

Com um olhar mais positivo, a modelo brasiliense Wizy Marques, 22 anos, revela que nunca sentiu discriminação no ambiente de trabalho por ser negra. E que nota uma presença crescente do casting negro em campanhas e desfiles. "É perceptível que há aquela preferência pela beleza europeia, de modelos loiras com olhos verdes, mas eu acredito que o empoderamento negro está ganhando cada vez mais espaço", justifica Wizy.

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