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A economia colaborativa cresce como reflexo de uma sociedade menos egoísta

Pensadores dizem que esta será a era do sentimento. Na prática, estamos deixando de lado o egocentrismo e olhando para o próximo. Prova disso são os projetos colaborativos, em que gente se une para fazer um trabalho diferente e com resultados gratificantes

Gláucia Chaves
postado em 06/11/2016 08:00
Em sua recente visita ao Brasil, o sociológo francês Michel Maffesoli afirmou que estamos vivendo a "era dos sentimentos". Antigos paradigmas estão sendo quebrados, conceitos como "sucesso" e "felicidade", sendo ressignificados. Para ele, a competitividade está dando lugar ao espírito coletivo. Diversidade e respeito às diferenças hoje falam mais alto que o individualismo. Muita gente concorda com Maffesoli e o pensamento de que vivemos em uma era "líquida", como prega o filósofo Zygmunt Bauman, começa a chamar a atenção. O mundo em rede, quando adaptado para a vida profissional, também ganha um nome: economia colaborativa.

Os adeptos dos novos vínculos de trabalho têm um perfil específico: não querem apenas trabalhar, querem algo que faça sentido. Querem trocar ideias, experiências, economizar, preservar o meio ambiente e, claro, ganhar dinheiro. As relações econômicas também mudaram. Há algumas décadas, o caminho de um profissional de sucesso era escalar cargos dentro de uma mesma empresa até chegar à chefia ; ainda que, para isso, esse indivíduo tivesse que permanecer na mesma organização por toda a sua vida profissional. Hoje, a sociedade parece querer redefinir o próprio conceito de ser bem-sucedido.

Rotatividade de empregos, habilidades múltiplas, parcerias e a busca por ofícios que fazem sentido para o trabalhador são a nova ordem. A era comandada pelos afetos, de acordo com estudiosos do tema, já começou. Escolhemos alguns poucos exemplos que estão fazendo a diferença em Brasília. Vamos conhecer juntos?

Mercearia


André Batista (D) e Gustavo Bill: parceria em uma mercearia colaborativa na Asa NorteA mentalidade colaborativa já faz parte da vida de Gustavo Bill, 32 anos, há algum tempo. O empresário é cocriador do Boomerang, uma plataforma digital que permite o aluguel e compartilhamento de bens e experiências em Brasília, além de produzir festas pela cidade com a ajuda de parceiros. O sucesso da primeira ideia acendeu a faísca: a colaboratividade está em alta. Quando o Mercearia nasceu, a proposta era de que o espaço funcionasse como uma cozinha colaborativa. O investimento inicial, contudo, obrigou os sócios a repensarem o modelo: seria necessário desembolsar mais de R$ 1 milhão. A solução foi tentar uma loja colaborativa. "Nosso mundo é em rede. O modelo tradicional é muito separatista, muito ;eu contra o mundo;. Você enfrenta um mundo que está cada vez mais contra você, com uma política econômica mais apertada, com mais concorrência. Sozinho, a chance de você tomar porrada é muito maior", justifica Bill. "O melhor é juntar quem tem os mesmos problemas que você e está buscando uma resposta."

Além de conhecer pessoas com objetivos semelhantes, a economia financeira e a praticidade são vantagens inerentes à nova economia conectada. Afinal, arcar sozinho com os salgados alugueis do Plano Piloto, por exemplo, não é para qualquer empresário. "O momento é muito propício para a colaboração, porque está todo mundo com problemas, crise, sem dinheiro, sem espaço", justifica Gustavo. "Muitos estão desempregados e tentando uma nova forma de trabalho, não só que dê renda, mas que deixe essa pessoa feliz." O modelo de parceria é lucrativo para todos os envolvidos: para os microempreendedores, a loja é uma chance de testar sua mercadoria a um custo consideravelmente menor do que se investissem em lojas próprias. "Você tem que mostrar o produto para o público para saber se ele é bom. Pode ser que ele ainda não esteja pronto", completa Bill. "Eu quero que daqui saiam várias lojas. Meu objetivo é desenvolver a marca e mostrar que a gastronomia de Brasília está crescendo."

Quem aluga um espaço para expor seus produtos na Mercearia recebe uma consultoria do chef André Batista, sócio de Gustavo Bill. O serviço funciona tanto como uma forma de ajudar os vendedores a aperfeiçoarem sua produção quanto para os donos da loja, que conseguem escolher as ofertas que mais têm a ver com a Mercearia. No começo, o cozinheiro admite que estava um pouco cético com relação a termos como "economia colaborativa". "Achava que era moda, uma coisa meio de hippie", brinca. Conforme a ideia foi tomando forma e se tornando realidade, Batista foi apresentado a uma infinidade de produtores e produtos made in Brasília.

A qualidade das mercadorias o pegou de surpresa. De cookies recheados com biscoito a sucos comestíveis, há de tudo um pouco. "Não precisa ser nada inovador. Às vezes, é uma coisa simples, mas que o cara teve uma sacada diferente." Investir no modelo colaborativo ajudou os sócios a economizarem e os produtores, a venderem. Mas não acaba por aí. A troca de experiências, de receitas, de contatos e ; por que não? ; a amizade entre os envolvidos são os principais ganhos. "Os produtores estão se encontrando sempre, conversando. Alguns já estão fazendo produtos juntos", explica André Batista. "A colaboratividade vem disso também, do networking entre as pessoas. Aqui é uma mesa de negócios natural", acrescenta.

Coletivo labirinto

Grupo Coletivo Labirinto se uniu para fazer pinturas e grafites no Setor Comercial Sul: proposta de revitalização do local e transformação em um point de festas
O Setor Comercial Sul representa, para muitos brasilienses, um local de trabalho ou para resolver problemas pontuais. Bancos, cartórios, Correios, consultas médicas, enfim, providências que o dia a dia exige. Quem olha com um pouco mais de atenção, contudo, vê quadradinhos roxos e verdes pintados no chão, grafites e mensagens em stencil nas paredes. Tudo obra do Coletivo Labirinto. A ideia, segundo o produtor Caio Dutra, 26 anos, é ressignificar o espaço, torná-lo sedutor e pulsante de vida. Para isso, a produtora dele promove festas e ações no local. "Meu pai sempre trabalhou aqui e, nas férias, eu vinha com ele", conta. "Comecei a enxergar o potencial do lugar. Estamos no centro de Brasília, ao lado do Setor Hoteleiro, da Rodoviária. Imagina se aqui fosse um polo cultural, como a Lapa, no Rio de Janeiro?"

A sonho "grudou" na cabeça de Caio. E se for mesmo possível trazer pessoas para se divertirem no SCS? Caio começou a conversar com amigos sobre o assunto. Em suas pesquisas, achou casos semelhantes no Brasil e no exterior: cidades em que o centro era tomado por prostituição e drogas e que, a partir da movimentação cultural, transformaram-se em locais de diversão, arte, feiras e o que mais a população estivesse a fim de fazer. "Durante o dia, as pessoas não têm tanto medo de andar por aqui, porque há muita gente. O que garante a segurança não é um posto policial, mas esse fluxo de pessoas." Conseguir manter isso também à noite é essencial para revitalizar o espaço ; é também o principal desafio.

Caio estabeleceu um primeiro contato com os comerciantes e moradores do Setor. Nas conversas, chegaram a um consenso: todos sairiam ganhando se a fama do local mudasse. Em 2015, Caio chamou produtores de eventos da cidade para visitar possíveis lugares para festas por ali. "Todo mundo falava que era legal, mas ninguém queria ser o primeiro", conta. No maior estilo "vai lá e faz", Caio resolveu se aventurar. Chamou uma banda punk de amigos e fez uma festa, clandestina, dentro de uma garagem. O evento, batizado oportunamente de Quem disse que não pode?, bombou. A segunda edição foi feita pouco antes do carnaval de 2016. A terceira ganhou outro nome: Amigocana, inspirado na expressão amigolate, mas com cerveja no lugar de chocolate.
Teria sido perfeito se não fosse um pequeno problema: na hora da festa, o condomínio se recusou a abrir a garagem. O jeito foi ir para o beco. "Chamamos uma iniciativa que trabalhava com pallets, fechamos a entrada do beco e ficamos no meio da rua mesmo", relembra. A experiência, para Caio, foi reveladora. "Rolou um ;clique;: o espaço é público, então, tem como conseguir uma autorização", explica. Nesse momento da história, um dos ajudantes convidados foi Raphael Sebba, 26 anos, amigo de longa data de Caio e engajado em diversos projetos sociais e culturais pela cidade, como a transmissão de filmes em Sol Nascente ao Isoporzinho no Lago, evento em incentivo à liberação da orla do Lago Paranoá. Nascia então o Coletivo Labirinto. Além de Caio e Raphael, o projeto conta com o esforço de Philipe Daher.

Raphael não nasceu em Brasília, mas adotou a cidade como sua. Por ter passado a adolescência no Rio de Janeiro, trouxe de lá a vontade de aproveitar a rua. "Sempre tive muito engajamento com projetos sociais e culturais, não só com eventos, mas de cultura mesmo, no sentido amplo de relação que as pessoas têm umas com as outras", detalha. A vocação social do rapaz trouxe outra mentalidade para o projeto de Caio. Além de festas, por que não fazer algo pelo espaço, deixar um legado? "Se não for assim, não adianta nada trazer um monte de gente para cá. Isso não vai resolver os problemas daqui", comenta. "É algo que nossa geração tem muito forte, e é muito bonito se organizar como rede. Nossa organização é focada em compartilhamento e horizontalidade, na abertura, na tomada de decisão conjunta, com envolvimento das pessoas."

E o trabalho em conjunto não é apenas da boca para fora. Além de parcerias com outras produtoras da cidade, o grupo organizou um tutorial de como conseguir autorização para realizar eventos no Setor Comercial Sul. A ideia é disponibilizar o material na internet. "Todo mundo ganha. Quanto mais diversidade e opção, mais eventos vão existir", aposta o produtor. "É uma tendência dos tempos atuais. O mundo inteiro está começando a se organizar como rede, não só por conta da tecnologia. Temos hoje ferramentas que potencializam isso de uma maneira nunca antes imaginada."

Because


O universo da moda é cheio de nuances e controvérsias. Trabalho escravo, incentivo ao consumismo, segregação social e muitos outros problemas fazem do mercado de roupas um terreno espinhoso. Fazer a diferença em um ambiente, por vezes, tão corrompido não é fácil, mas Renato Amaral, 27 anos, é um dos que toparam o desafio. Amaral é um dos sócios e criadores da Because, empresa que aposta no consumo consciente e na quebra da cadeia de exploração geralmente associada à fabricação de peças. As camisetas da marca são feitas com algodão orgânico e tingidas com pigmentos naturais, livres de químicos e extraídos de flores por comunidades do Norte e do Nordeste. Os costureiros são ex-presidiários do projeto de reinserção social PanoSocial, de São Paulo. Cada coleção usa como tema uma causa social, e 20% do valor de cada peça são revertidos diretamente para essa bandeira. A escolha de trabalhar em parceria com projetos sociais se deu, justamente, para fazer um contraponto à exploração de mão de obra nessa indústria. "Ainda existe muito preconceito com a reinserção de egressos do sistema prisional", lamenta.
Because: marca de roupas criadas por Renato Amaral tem o propósito de se engajar em causas diversas
Tudo começou em uma conversa entre amigos. "Era uma busca por propósito, por enxergar sentido naquilo que a gente faz", explica o empresário. O grupo se inscreveu em uma maratona de aceleração de projetos sociais e foram selecionados. O reforço positivo foi suficiente para abraçar de vez a inspiração. Renato pediu demissão da agência de publicidade em que trabalhava. "Nesse concurso, entendemos que precisávamos prestar atenção em toda a cadeia produtiva", completa. "Paramos para estudar essa cadeia e vimos que a moda é muito perversa. É a segunda indústria que mais consome água e é extremamente poluente. Fora o trabalho escravo, que é praticamente banalizado."

Hoje, Renato explica que a Because é uma empresa "B", ou seja, visa o lucro, mas com benefícios socioambientais e engajamento em causas sociais. A coleção da vez, por exemplo, tem como tema o combate à cultura do estupro e à violência contra a mulher. Batizada de Vencedoras, é fruto de uma parceria com a Casa Abrigo, iniciativa que acolhe mulheres em situação de violência, sob grave risco de vida. A porcentagem das vendas destinadas ao projeto social é usada para custear kits de higiene pessoal, roupas íntimas, medicamentos, material para oficinas de costura e outros objetos que o Estado não fornece a elas.

Muito mais que a filosofia, são as parcerias o coração da marca. A ajuda colaborativa se deu em todos os processos: da ideia ao próprio know-how do que é fazer moda. "Chamamos um amigo que trabalha com design porque não entendíamos nada do assunto", completa Renato. O colega ajudou o grupo a desenvolver modelagem, as estampas e um projeto editorial. Por fim, a transparência é a cereja do bolo da marca. Na etiqueta, o cliente encontra a descrição de todos os custos do produto, inclusive a margem de lucro da empresa. "O legal é perceber que está fazendo sentido para muita gente. Estamos passando por um momento de conscientização, de uma mudança de era. A competição desenfreada não faz mais sentido."

Coletivo da Cidade


Por fora, a casa não tem nada de diferente das outras da Cidade Estrutural: paredes sem reboco, a poeira vermelha na porta. Por dentro é que a coisa se transforma. O Coletivo da Cidade funciona como um espaço de aprendizagem que reúne vários outros coletivos e iniciativas sociais. Jaqueline de Sousa, 30 anos, faz parte da coordenação do trabalho pedagógico do coletivo. Há cinco anos, quando o projeto começou, ela explica que o trabalho consistia basicamente em minicursos para crianças e adolescentes sobre idiomas, desenho, grafite, direitos humanos e outros temas de interesse da comunidade.

O projeto nasceu como uma continuidade de outro trabalho, que atendia pais e filhos para a criação de vínculos e melhoria da convivência familiar em comunidade. Desde 2012, em parceria com a Secretaria de Estado de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh), o espaço funciona com sala de aula para meninos e meninas de 6 a 15 anos, no período em que os jovens não estão na escola. Atualmente, a parceria mais forte é com o Instituto de Estudos Socioeconômi,cos (Inesc). "Eles se aproximaram da gente com uma proposta de construção coletiva do projeto Observatório de Crianças e Adolescentes, o Oca", detalha Jaqueline.

A perspectiva do Oca era fortalecer a metodologia do Coletivo, que se propõe a transformar os jovens em protagonistas de suas próprias vidas. "É trabalhar o olhar deles na comunidade, para que possam monitorar o território, intervir, reconstruir juntos, acreditando no potencial de transformação que eles têm." O trabalho do coletivo funciona a partir das chamadas rodas de aprendizagem. Cada uma contempla um eixo do saber, como criar, cuidar, conviver e brincar. Cada um dos verbos tem atividades específicas que contribuirão para que os saberes dos jovens sejam desenvolvidos. "Fomos amadurecendo isso e, hoje em dia, temos trabalhos bem concretos das crianças e adolescentes que se organizam em torno dessas rodas", completa.
Coletivo da Cidade nasceu de um projeto de Jaqueline (meio) e agora reúne outras iniciativas, como o Mapa das Desigualdades, de Cleo Manhas, e Engenheiro sem Fronteiras, de Tales Ferreira: valorização e empoderamento dos jovens
Os projetos feitos pelos integrantes do coletivo vão de objetos a videoclipes, passando pela produção de um jornal, o Voz da Quebrada, e até mesmo intervenções literais, como o projeto Beco da Esperança. A ideia deste último foi transformar um local sujo, cheio de lixo e perigoso em uma horta comunitária. "Os adolescentes foram especialmente protagonistas nesse processo de diálogo com a comunidade", completa Jaqueline. Foram eles, inclusive, os responsáveis pelas reuniões com vizinhos, pelo planejamento, proposta, captação de parceiros e diálogo com representantes governamentais. Ajudá-los a encontrar os próprios caminhos é o principal objetivo da iniciativa, mas apurar o olhar dos mais novos para o mundo ao redor é tão essencial quanto o protagonismo. "Queremos que eles saiam dessa perspectiva de estudar para sair daqui. Aqui é um território de possibilidades, mas do que de problemas. O que temos que fazer é enxergar juntos."

Cleo Manhas faz parte de um dos projetos desenvolvidos no Coletivo da Cidade. A assessora política do Inesc explica que um deles é o Mapa das Desigualdades, um levantamento para esquematizar a quantas anda a saúde, a educação, a mobilidade e outros indicadores das diferentes regiões do Distrito Federal. "A ideia é atuar pelo direito à cidade, torná-la mais democrática, sem tanto distanciamento entre o centro e a periferia", explica. Outro projeto atuante no coletivo é o Engenheiros Sem Fronteiras, iniciativa internacional exportada para cá graças ao idealismo do estudante da Unb Tales Ferreira, 24 anos. "Trouxemos alguns projetos que já estavam sendo feitos em outros lugares, como as oficinas de sabão ecológico, de ciência para crianças e de aquecedores de chuveiro", lista.

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