A história da Cidade Estrutural é marcada por lutas. Dos primeiros habitantes que tiravam do lixão sua subsistência, há cerca de 30 anos, aos microempresários de hoje, a cidade tenta resistir e melhorar a todo custo. De acordo com pesquisa aplicada em 2015 pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), são 39.015 moradores, que batalham para conseguir o básico: esgoto, asfalto, escolas, creches e emprego. Os tempos de mero aterro sanitário ficaram para trás. Projetos de arte, cultura, inclusão social e empoderamento surgem a todo momento, provocando mudanças não só de ordem prática (como a melhoria de renda da população), mas de consciência.
São transformações muito promissoras. Atentos ao movimento, Caroline Soares Santos e Coracy Coelho Chavante, ambos de 33 anos, trocaram o "avião" pela Estrutural. O casal se conheceu lá, trabalhando como voluntários em projetos diversos. Caroline começou a se envolver com a cidade durante a faculdade de ciência política. "Quando ingressei no mestrado, resolvi, com um grupo de amigos, acompanhar o processo de urbanização da cidade", detalha a professora. O projeto tomava cada vez mais tempo e Caroline passava a maior parte do dia na Estrutural. "Conheci o Coracy em uma ONG na qual estávamos trabalhando. Eu me envolvi muito com a cidade, que é muito viva e tem pessoas muito participativas", completa.
A professora e o teólogo estavam apaixonados: um pelo outro, pela cidade e pelos projetos. Ela continuou estudando a Estrutural, que também foi tema de sua tese de doutorado. Quando veio a decisão de morarem juntos, naturalmente não pensaram em outro endereço. "Eu havia passado no concurso do Instituto Federal de Brasília (IFB). Então, além de morar e militar, comecei a trabalhar na cidade", conta Caroline. "Para a gente, o que mais importava não era a proximidade com o Plano Piloto, mas os projetos e a relação que estabelecemos com a cidade."
O casal continua engajado em diversas iniciativas, como o museu Ponto de Memória, o Coletivo da Cidade, a Prefeitura Regional Comunitária e o Banco Comunitário. "Temos muita satisfação em morar aqui, não só pela militância. É como se fosse uma cidade pequena, todo mundo se visita. Não tem muita formalidade, como é a realidade de Brasília", opina a professora. "É essa coisa de poder fazer tudo de bicicleta, de falar com os outros. Claro que a cidade ainda é muito precária, mas a dinâmica lá é outra. Tem feiras em que as pessoas se encontram todos os domingos, eventos organizados pela população. A Estrutural é muito viva."
Cidadania acessível
Logo de cara, a Cidade Estrutural deixa claro quais são suas carências: trechos de rua sem asfalto; casas que se mantêm em pé graças a pedaços de pau; esgoto escoando pela calçada. Em meio a tantas deficiências básicas, é difícil pensar em algo que não seja garantir a sobrevivência da população. Deuzani Noleto, 61 anos, foi uma das pessoas que conseguiram ver além. Ao lado de Maria Abadia Teixeira de Jesus, 53 anos, a arquivista coordena vários projetos que visam melhorar a qualidade de vida dos moradores da Estrutural. O museu Ponto de Memória, o Banco Social, a Abadia Catadora Editora e a ainda não inaugurada Biblioteca Comunitária são alguns exemplos, todos encabeçados pelo Movimento de Educação e Cultura da Estrutural (Mece).
O Ponto de Memória surgiu a partir de um projeto piloto do Ministério da Cultura, em 2009. À época, o órgão escolheu 12 cidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano para começar as ações. A ideia central é que o local sirva como um repositório de memórias, um lugar para os moradores registrarem a história da cidade em que vivem. Deuzani explica que lá também acontecem atividades culturais e artísticas. "Como nós já trabalhávamos com projetos de alfabetização, estimulávamos os alunos a escreverem sua história pessoal. Por isso, o projeto veio muito a calhar", completa. Por dois anos consecutivos, 2011 e 2012, a iniciativa da Estrutural venceu o Prêmio Pontos de Memória, promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Com o dinheiro, compraram máquinas fotográficas, filmadoras e datashow.
O recurso serviu também para o museu organizar sua primeira exposição: Movimentos da Estrutural ; lutas, movimentos e conquistas. "Contamos como foi a luta para permanecer no espaço, para conseguir água e luz", detalha Deuzani. A segunda exposição, A mulher e a cidade, tratou sobre como é ser mulher na Estrutural. O material exposto foi produzido por um grupo de estudantes de fotografia de uma faculdade de Brasília, que passou um mês fotografando as moradoras. "Colocamos essas fotos ao lado de fotos de mulheres notáveis, como Rosa Luxemburgo, Dilma Rousseff e Carolina de Jesus", lembra a organizadora.
Por enquanto, o museu não tem um espaço fixo. Deuzani e Maria Abadia se viram como podem para pagar o aluguel de uma casa que serve como sede provisória, mas o sonho delas é que o museu tenha endereço próprio. "Se um dia a gente não conseguir mais sustentar a casa, o projeto para. Queremos um museu comunitário em que a comunidade faça parte da gestão, um espaço para exercer a museologia social, que conta a história dos moradores, não só a dos ;vencedores;", completa. "É mais fácil para uma população que conhece sua história se empoderar ; até para não cair na especulação imobiliária que já começou por aqui. As pessoas precisam de dinheiro, vão vendendo suas casas e a história de quem lutou pela cidade vai se perdendo", constata.
Inaugurado em 2012, o Banco Social é outro projeto que visa valorizar a Estrutural. A ideia é que a riqueza produzida na cidade fique por lá. Para isso, foi criada uma moeda social, batizada de Conquista. Cada Conquista equivale a R$ 1, mas só vale na Estrutural. Assim, os usuários compram apenas de produtores e comércios locais. O desafio atual é difundir entre a população o E-Dinheiro, ferramenta financeira móvel criada especificamente para bancos comunitários e que funciona de forma parecida com o sistema de cartão de crédito e débito. "O cliente faz os pagamentos do celular dele para o celular do comerciante", detalha Deuzani. A cada compra, 1% do valor vai para o Banco Social e 1% para a manutenção do sistema. "É uma esperança de sustentabilidade para os bancos comunitários." O banco também tem linhas de crédito para moradia, consumo e produção (para os microempreendedores).
Outro exemplo: a Abadia Catadora Editora, surgida a partir de uma oficina de edição de livros oferecida por integrantes da editora argentina Eloisa Cartonera. Os livros produzidos são artesanais, feitos com capas de papelão reciclado. O espaço físico destinado à Biblioteca Comunitária já existe, mas precisa de reparos para abrigar os mais de 5 mil volumes que Maria Abadia já reuniu, fruto de doações. "Se conseguirmos pintar as paredes, já podemos começar a chamar os voluntários para ajudar a organizar os livros", relata Deuzani.