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Pacientes colaboram com indústria farmacêutica na criação de novas drogas

Informações como complicações colaterais e tempo de feito, por exemplo, ajudam na reformulação dos medicamentos. Cientistas ouviram 23 mil pacientes para formular um anticoagulante

Otávio Augusto - Enviado especial
postado em 14/12/2016 14:50

Roma ; Até chegar às prateleiras das farmácias, os medicamentos passam por uma série de passos de pesquisa laboratorial e testes clínicos. Por isso, a demora da descoberta, passando por pesquisas, até a comercialização. Agora, os especialistas apostam em um novo modelo de estudo para o aperfeiçoamento dos remédios. Os usuários passam a ter um protagonismo jamais desempenhado na indústria farmacêutica. Cientistas querem saber as percepções dos pacientes e usar essas informações na concepção das drogas. Na lista, entram os efeitos colaterais, o tempo de ação e os benefícios alcançados. A partir dessas informações, os estudiosos alteram a estrutura da droga, a fim de testar novos títulos ou simplesmente ajustar o funcionamento das já receitadas nos consultórios médicos.

Ilustração de medicamentosLonge de ser um método de filme de ficção científica, no Brasil já circula um remédio anticoagulante desenvolvido a partir desse modelo de pesquisa. Nos últimos três anos, um grupo de cientistas acompanhou 23 mil pacientes nos Estados Unidos para o desenvolvimento do medicamento. Segundo os pesquisadores, com os depoimentos dos usuários, alguns ajustes resultaram na redução de 47% nas hemorragias intracranianas, por exemplo. Atualmente, a droga é vendida em 120 países.

A reviravolta na linha de produção vem da possibilidade de ouvir a avaliação dos pacientes e fazer mudanças a partir disso. Normalmente, durante a fabricação de um remédio, grupos específicos, de 20 a 200 pessoas, fazem parte dos testes. Com as "evidências do mundo real" (RWE, real world evidence, em inglês), como a técnica é chamada, o resultado é mais abrangente, atingindo o universo de pacientes de uma determinada doença, fugindo assim do perfil de teste pré-estabelecido nos laboratórios. Dessa forma, o processo que hoje conta com cinco fases, de acordo com norma técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ganharia mais uma etapa (veja quadro). O assunto foi tema de debate no 12; Congresso da Sociedade Europeia de Arritmia Cardíaca (ESC 2016), realizado na Itália, em setembro.

Até comercializar um medicamento, porém, a indústria farmacêutica realiza testes em cinco escalas:

Imagem de pílulas de medicamentos com informações sobrepostas

A técnica


O conceito é ancorado na demonstração do benefício do remédio nas condições em que não há interferências da ciência no usuário. Normalmente, quando o medicamento é comercializado, após os testes nos grupos pré-determinados, ele perde algum grau de eficácia. A falha pode ser resolvida com a integração entre as pesquisas desenvolvidas na bancada dos laboratórios e a percepções dos médicos e dos pacientes. Dessa forma, a composição é revisada para que a efetividade seja mantida. Nesse caso, se identifica a parte da molécula responsável pela ação do fármaco e alteram-se, ou criam-se substâncias diferentes.

A abordagem exige a construção de bases de dados a partir da coleta de informações de quem vai ingerir a droga. O professor John Camm, do Centro de Investigação em Ciências Cardiovasculares da Universidade de Londres, no Reino Unido, acredita que as evidências do mundo real são importantes para o alcance de tratamentos menos agressivos. "Ensaios clínicos permanecem como referência para avaliar a eficácia e a segurança de um medicamento, mas a evidência do mundo real está desempenhando um papel cada vez mais importante na complementação do nosso conhecimento sobre o uso e impacto dos medicamentos na prática clínica diária", explica Camm.

A comunicação entre os médicos, cientistas e pacientes deve ser estreitada para que a troca de informações possa responder mais rapidamente a questões que, quando avaliadas somente por uma frente da medicina, levaria mais tempo e custaria vidas. "O ensaio clínico pode dizer o que a droga faz, enquanto as evidências do mundo real podem fornecer o contexto que diz se o que ela faz realmente importa", acrescenta Camm.

imagem de cartela de remédios com informações sobrepostas

Experiência


Craig Coleman, professor de Farmácia Prática da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, garante que pesquisas baseadas em resultados no mundo real são a chave para a compreensão da rotina de funcionamento de um medicamento no organismo dos pacientes. Entretanto, os resultados devem ser analisados com cautela. "Ao avaliar os dados do mundo real, é importante observar tanto benefício (a eficácia de um medicamento), como o risco (o quão bem um medicamento é tolerado), a fim de obter uma compreensão completa de como um ele funciona", argumenta Coleman.

Apesar da inovação, o especialista garante que mesmo os melhores medicamentos só surtem efeitos quando os pacientes seguem de forma adequada a prescrição e aderem ao tratamento. "A educação destinada aos doentes e suas famílias aumenta a consciência da importância de seguir os planos de tratamento. A comunicação aberta e eficaz entre médicos e pacientes capacitará os usuários a desempenharem um papel ativo na gestão da sua própria saúde", frisa Camm.

A valorização de tais evidências tem despertado o interesse das companhias farmacêuticas, sobretudo, segundo os especialistas, porque na avaliação de dados de efetividade, por exemplo, o laboratório ganha a oportunidade de oferecer uma "segunda janela" de comercialização para o medicamento. Assim, aquela droga que não teve bom desempenho em ensaios clínicos passa a ter uma nova oportunidade de encontrar seu lugar no mercado e oferecer melhores soluções a quem depende de uma composição química para ter qualidade de vida e até para sobreviver.

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