[VIDEO1]São tempos turbulentos. Extremistas até. Ainda assim, boa parte do mundo ocidental celebra hoje uma mensagem de amor. O nascimento de Jesus de Nazaré coincide com a ânsia humana por renovação. A proximidade do ano-novo reforça a ideia de fechamento de ciclos e, de algum modo, altera a disposição das pessoas, mesmo das não religiosas. Por mais consumista que seja, esta é uma época em que nos cercamos de símbolos muito profundos, a começar pelo presépio.
Livros inteiros foram escritos sobre José, Maria e o menino na manjedoura. Sobre o significado dos presentes trazidos pelos Reis Magos: mirra, incenso e ouro. Sobre a estrela que cruzou os céus e serviu de bússola. Geralmente, são esses os aspectos lembrados do mistério natalino. Há outros mais difíceis de serem materializados, como a descida do Espírito Santo, mas que a tradição cristã soube solucionar na forma de pombas e de resplendores.
Se a espiritualidade pode ou não ser representada, é uma longa discussão. Os muçulmanos, por exemplo, não retratam Maomé. No século 16, a reforma protestante condenou o culto a imagens, taxando-o de idolatria. Em seus primeiros tempos, o Brasil desconheceu essa polêmica, pois estava sob jugo português e a influência das missões catequizadoras. Aqui, pelo contrário, a arte barroca desabrochou, assim como o sincretismo com as religiões de matriz africana, ajudando a estabelecer o culto aos santos.
E os santos, de onde vêm? É uma boa pergunta. A arte dos chamados santeiros se desenvolveu com os primeiros centros urbanos do país. No começo, em Pernambuco, depois na Bahia, finalmente chegando a Minas. Foi forte também no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em Goiás, sendo que um dos mais impressionantes mestres do barroco tardio, o escultor José Joaquim da Veiga Vale nasceu em Pirenópolis, em 1806. Brasília, por ser tão jovem, não participou de nenhuma tradição.
Isso não impede que o brasiliense exercite sua devoção ou mera admiração pela imaginária cristã e, sobretudo, pela figura do aniversariante. Na Revista do Correio deste domingo de Natal, convidamos o leitor a olhar sem preconceito para essas imagens, que buscam, por meio do belo, evocar um ambiente de contemplação, em que todas as promessas são cumpridas.
Retratos franciscanos
Cleziania captou a essência de São Francisco. Nas mãos dela, o santo ganhou ar sereno e um sorrisão no rosto. Os bichos, por sua vez, se multiplicaram. A artesã de Alexânia recria as cenas franciscanas com gatinhos, cachorrinhos, tartarugas, pombas e o que mais vier à mente. "Sempre tento retratar essa simplicidade dele e o amor ao próximo", resume.
O primeiro Francisco foi uma encomenda. "Eu não trabalhava com imagem sacra. Fiz um e deixei exposto. Todo mundo que passava perguntava. Nessa época, assisti a um filme que achei muito bonito, Irmão Sol, irmã Lua. Eu viajei nesse filme, sabe?" Hoje, o santo é o seu best-seller.
O Natal aumenta a quantidade de pedidos em até 60%, ela diz. Como trabalha só, a produção dificilmente supera quatro peças por dia. Além dos motivos natalinos, ela sempre molda as figuras humanas que viu na infância. "Minha mãe trabalhava com utensílios para a casa, fazia panelas. A inspiração veio dela. Comecei brincando com o barro. Quando vi que levava jeito, passei a trabalhar temas do cotidiano: a mulher ralando milho, moendo café, lavando roupa na pedra. Gosto muito também de fazer mulheres amamentando."
Na melhor das companhias
"Para ser presépio, tem que ter bicho", começa Augusto Luitgards, 60 anos. O professor da UnB, especializado em linguística aplicada, deseja fazer uma distinção, às vezes, esquecida. Na história da arte, o tema do nascimento do Cristo se chama natividade. Diz a tradição que presépio mesmo só depois do Natal celebrado por São Francisco em Greccio, em 1224 (leia mais na coluna Berço da Palavra, na página 34). Com seu amor pelos animais, o santo humilde teria feito questão de "convidar" boizinhos e burrinhos (veja box) para testemunhar o grande acontecimento.
É difícil não se impressionar com a sala de estar do apartamento de Augusto, na Asa Sul. A visita que adentra é observada de todos os lados por olhos feitos com contas de vidro ; são centenas de imagens de santos, cada uma mais elaborada que a outra. Curiosamente, o professor não é religioso. É colecionador. "E colecionador nasce colecionador", garante, mostrando a primeira imagem, um São João Batista, adquirido bravamente aos 14 anos, durante uma viagem ao Ceará na qual gastou todo o dinheiro da merenda na aquisição. "Passei dois dias a pão e água, mas com o santo dentro da matula."
O homem tem mesmo o olho treinado e deu uma aula à reportagem. "O ponto de partida para uma imagem ser sacra é a hagiografia ; a história do santo, do milagre, da aparição, da intercessão dele. Essa hagiografia, muitas vezes, é edulcorada de acordo com os interesses da época. Por exemplo, Santa Maria Goretti virou uma protetora da virtude da virgindade porque lutou até a morte para manter-se virgem quando foi atacada. Cada um desses santos, em sua história de vida, tem um mérito, o que se reflete muitas vezes nos atributos. O que são os atributos? Um santo evangelista vai ter um evangelho nas mãos. Um santo peregrino estará de botas. Por exemplo, São José usava botas ; é uma referência à fuga para o Egito", explica.
Além dos santos propriamente barrocos, Augusto coleciona arte popular e faz questão de ressaltar as qualidades de mestres como Antônio Poteiro, Dirceu Carvalho e Miriam Inês. Não é um acaso existir esse cruzamento entre o sagrado e o popular. Foi algo que surgiu da fé das pessoas simples. "As festas, procissões e várias formas de devoção popular difundidas no período colonial levaram o culto às imagens religiosas para dentro das casas. A necessidade de atender a essa demanda está na origem da arte sacra popular", reconhecem os pesquisadores Alberto Martins e Glória Kok.
Leia a reportagem completa na edição n; 606 da Revista do Correio.