Por André Baioff*
A atitude genderless, ou sem gênero, não para de ganhar força na moda. Ela desafia as fronteiras entre masculino e feminino no modo de vestir. Trata-se de uma possibilidade a mais de construção da identidade, que guarda semelhanças com a provocação andrógina dos anos 1970. O genderless, porém, tem pegada política, mais do que estética, e questiona comportamentos tradicionais. Pode-se problematizar desde o uso das cores até o corte das roupas.
Para o pesquisador em teoria e história da arte Marco Antônio Vieira, a moda vive de ondas e o genderless é uma delas, abraçada pela comunidade LGBT ou por quem apoia a causa. "Há uma dimensão política nessa adesão, que talvez não seja devidamente compreendida por todos aqueles que a adotam ou que absorvem recortes domesticados da tendência. Obviamente, o que temos agora é ato em prol da visibilidade. É distinto e mais explícito", chama a atenção.
Pioneiro, o comunicólogo Savio Marques, 33 anos, exibe o estilo há mais de 10. Para ele, mesmo sem refletir sobre o tema, isso sempre foi presente em sua vida. "Era algo que eu fazia intuitivamente, sem muitos questionamentos. Talvez no início da minha adolescência, para tentar datar, eu tenha começado a pensar mais especificamente sobre essa temática", relembra.
Savio usa um longo dread branco e compõe o visual com saias. Segundo ele, os adeptos do sem gênero são indivíduos complexos ; como qualquer outro, nem mais nem menos. "São seres humanos que não estão em caixas classificáveis", pondera. Savio conta que é comum as pessoas julgarem seu estilo, acharem exagerado. "Mas eu estarei assim em qualquer horário. Pode me procurar em casa, na hora de dormir, que vão me achar assim. Há uma necessidade de se importar com as roupas alheias. Certas pessoas não entendem que isso é algo natural para mim", garante.
O comunicólogo também diz que, em seu local de trabalho, há regras de vestimenta. Entre elas, homens não podem mostrar as pernas. Como ele gosta de usar saias, opta por uma mais longa, mas não deixa de usá-las. "Enquanto isso, as mulheres podem usar vestidos que mostram as pernas, sem problemas", protesta.
Explicação na história
No mundo da moda, o genderless não é um comportamento novo. Segundo o produtor de moda Marcus Barozzi, 31 anos, civilizações antigas não viam a saia como peça exclusivamente feminina. "Vamos pensar que, no início da civilização, a roupa definia mais a posição social do que o gênero. No Egito Antigo, todo mundo usava saia", ensina.
"O sem gênero esbarra mais em um conceito social do que apenas na questão das vestimentas. Até hoje, na Escócia, a saia é o símbolo máximo da masculinidade. Quem impõe gênero é a sociedade", explica. Aliás, no início do século 20, Coco Chanel revolucionou ao incorporar modelos, peças e cortes masculinos no leque de possibilidades do vestuário para mulheres.
"De fato, a moda do século 20 já havia remexido o solo incômodo e fértil do gênero. Começou com Chanel e Yves Saint-Laurent ao fazerem empréstimos do guarda-roupa masculino. Posteriormente, Jean-Paul Gaultier e suas saias para homens. Depois, com Rei Kawakubo, da Comme des Garçons para Kawakubo. O termo adotado nos anos 1980 e 1990 foi genderbender, o gênero modulável e flutuante", corrobora Marco Antônio Vieira.
Assim como no século 17, quando a apresentação visual usada pelos monarcas mais influentes indicava normalização na forma como os homens se vestiam, o que temos agora é um quadro político e de visibilidade, distinto e mais explícito. "Estamos diante de uma questão da maior complexidade, que abarca contextos históricos e culturais. Na França barroca, Luís XIV usava salto alto, fitilhos, diamantes, laçarotes, tafetá e maquiagem. Esses itens eram considerados parte do aparato da apresentação visual do monarca mais influente da Europa, ou seja, eram itens naturalizados como masculinos", ressalta o pesquisador.
Desde muito jovem, o comunicólogo Savio Marques questiona as limitações do vestuário masculino
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Moda
Oportunidade ou necessidade?
Na capital federal, jovens empreendedores aproveitam a popularidade dessa tendência e abrem espaços para mudanças no mercado. É o caso do administrador Gabriel Leão, 32 anos, que decidiu abrir a loja de roupas por encomendas Moliherr porque não encontrava saias para homens. "A ideia surgiu de uma decisão pessoal. Eu queria poder usar uma saia, mas não encontrava com facilidade para o corpo dito masculino. Resolvi aprender a costurar e comecei a fazer minhas roupas. As pessoas viam e gostavam do que eu fazia. Foi aí que resolvi me aventurar", diz.
Para ele, moda sem gênero reforça a quebra de estereótipos, que é base para muitos preconceitos, principalmente com relação à comunidade LGBT. "A moda ;agênera; é uma possibilidade de vestir quem quer que seja com qualquer peça. Retirar o vínculo com um determinado gênero e se permitir, sem amarras, a possibilidade de levar pela moda a desconstrução dos padrões de gênero", completa.
Cosmopolita, Brasília possibilitou, com a internet, uma abertura para esses acontecimentos. O jovem Phablo Ricardo, 27 anos, usou o seu projeto de conclusão do curso de moda pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (Iesb) para dar nascimento a ; Can Be. Esse nome é uma abreviação de You can be, que, em tradução livre, significa "você pode ser". "A proposta da marca é despertar o melhor de cada um, independentemente de gênero, orientação sexual ou etnia. Você pode ser o que quiser, seja livre de rótulos", elucida Phablo.
A ; Can Be é inspirada na cultura pop dos anos 1990. A coleção de estreia se chama We Are Infinite e com referências da estética oriental kawaii (foto). A marca não foi lançada para o mercado, embora Phablo a esteja divulgando nas redes sociais. Ele aguarda um evento de moda, previsto para fevereiro, para iniciar as vendas na internet. "Estamos começando a divulgação hoje, praticamente", brinca o designer de moda.
Mais do que uma sacada de mercado, a opção pelo genderless surge da necessidade. O estudante Sau Lhavetto, 21 anos, é um jovem que busca viver sem restrições para produzir os seus looks. Segundo ele, ainda é difícil achar uma loja de roupas "fora" dos gêneros. Isso o motivou a abrir, ao lado das amigas Tayse Maris e Ana Caroline Cardoso, a loja virtual 2U2. "A gente está vivendo uma juventude muito aberta e é isso que tem alimentado a 2U2. As pessoas olham e gostam do conceito e da atitude. O nosso principal público é a galera jovem, que gosta de se vestir bem, mas sem gastar muito", conta. n
* Estagiário sob supervisão de Gustavo T. Falleiros.
"Eu queria poder usar uma saia, mas não encontrava com facilidade para o corpo dito masculino. Resolvi aprender a costurar e comecei a fazer minhas roupas"
Gabriel Leão, administrador
Phablo Ricardo e Sau Lhavetto: a partir da experiência pessoal, ambos identificaram uma oportunidade
Dois exemplos da coleção sem gênero da marca Moliherr, de Gabriel Leão