Nahima Maciel
postado em 21/05/2017 08:00
;Tudo na vida está em constante movimento;, escreve a biomédica Vilma A. Domeneghetti Davanzo, especialista em psicologia transpessoal. Não há nada de banal na obviedade contida na frase. Quando o movimento citado pela profissional está no curso esperado, mal se percebe o que repousa nas margens da estrada. Mas, quando a velocidade é reduzida e o passageiro da vida é obrigado a parar no acostamento, a incerteza sobre o percurso faz duvidar do movimento. E aí, acreditar na constância dele é questão vital. A frase da biomédica está na introdução do livro que celebra os 30 anos do Programa de Transplante de Medula Óssea, do Hospital Israelita Albert Einstein. E diz muito sobre os habitantes temporários do sexto andar, ala conhecida como bolha, na qual ficam confinados os pacientes que passam pelo tratamento e precisam ficar isolados para não contrair infecções.Idealizado pela jornalista e escritora Dad Squarisi e pelo médico Nelson Hamerschlak, coordenador das áreas de Hematologia e de Transplante de Medula do Einstein, o livro reúne 30 depoimentos. A maioria dos relatos é de pacientes em tratamento ou de gente já curada, mas há também as narrativas de pais, mães e irmãos de pessoas que já se foram, de crianças que ainda lutam e de filhos dos que preferiram delegar a missão de contar como passaram pelo processo de receber o diagnóstico e enfrentar o tratamento.
Esses pacientes e parentes narradores falam de alívios e alegrias; perdas e renascimentos; experiências traumáticas e esperanças, mas, sobretudo, de humanidade. As pessoas presentes durante a caminhada dos pacientes são também parte do tratamento. A equipe médica, a família e os amigos ajudam a proporcionar os momentos mais emocionantes dos depoimentos. São histórias, como aponta Hamerschlak, capazes de remodelar valores e perspectivas em relação à vida.
;Esse livro vai ser uma mensagem para pacientes em geral, para pessoas que estão do lado daqueles que precisam de ajuda. E, até para quem não está precisando, porque todos nós estamos sujeitos a, de repente, ter na frente um muro e bater de cara nele. Às vezes, não temos essa percepção;, acredita o médico, que também celebra três décadas na prática do transplante de medula. ;Uma coisa que se nota em cada depoimento é a mudança dos valores. Não são mais os mesmos, mudam por completo. O prazer das pequenas coisas, a valorização da família, dos amigos. É muito legal acompanhar isso. Serve para nós também.;
Ana Claudia Dans
Ser adulto é estar e, um carrossel que nunca para de girar. Não há como descer e Ana Claudia Dans não havia compreendido exatamente o que isso significava quando ouviu a metáfora em um episódio de Grey;s Anatomy, seriado sobre um grupo de residentes em um hospital escola. Foi quando se sentou para relembrar dos últimos anos, com o objetivo de escrever o depoimento para o livro do Einstein, que se deu conta: de fato, a vida é ;como um imenso carrossel;.
Ana Claudia recebeu o diagnóstico de aplasia aos 15 anos. Foi tratada no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci) e, no dia do aniversário, teve a notícia de que a medula, inexplicavelmente, voltara a funcionar. De volta ao convívio com a família e à escola, ela prosseguiu com o sonho de estudar medicina e foi fazer cursinho pré-vestibular.
Seis anos depois do primeiro diagnóstico, Ana Claudia começou a notar manchas roxas pelo corpo. O cansaço se instalou, o hemograma deu o sinal de alerta e a estudante voltou ao tratamento. Agora, uma mielodisplasia indicava a necessidade do transplante de medula, evitado durante a adolescência graças à repentina retomada da medula. Deixar de lado o cursinho e se afastar da família e dos amigos pesavam tanto quanto o medo do procedimento. A perda de um primo durante um tratamento semelhante, anos antes, não a ajudava a ter segurança. Mesmo assim, Ana Claudia seguiu adiante.
Em 22 de maio do ano passado, teve a notícia da pega. É o momento mais esperado pelo transplantado e por todos que o cercam, quando se tem a constatação de que o corpo não rejeitou a medula transplantada. No depoimento, tudo está concentrado em quatro ou cinco páginas, mas, na vida real, Ana Claudia se lembra de que tudo ocorre com uma lentidão melancólica. ;A vida parece não andar para a frente;, conta.
Aos 22 anos, a urgência de viver se impõe e os dias de isolamento no hospital e em casa, à espera das intercorrências inevitáveis e já conhecidas dos transplantados, com possíveis infecções e sucessivos retornos ao hospital, são um teste de força. ;No imenso carrossel em que vivemos, passamos por momentos de dor, desespero, angústias. Giramos por cima de muitas derrotas. Mas também giramos por cima de conquistas e alegrias, que nos fazem seguir em frente no nosso eterno ciclo, que é a vida;, escreve Ana Claudia.
Claudia de Crescenzo
A pequena Mariana conhecia hospitais porque a mãe, profissional de saúde pública, a levava a comemorações e a eventos de doação de brinquedos. Mas, em maio de 2002, a experiência de Mari com hospitais mudaria. Diagnosticada com a leucemia linfoide aguda aos 6 anos, a rotina hospitalar passou a fazer parte do cotidiano. No livro, quem dá o depoimento é Claudia, mãe dela. O doutor Nelson Hamerschlak usou a metáfora dos soldadinhos brancos, vermelhos e da defesa para explicar a neoplasia maligna que afeta a produção de linfócitos na medula óssea. Os linfócitos são células essenciais para a defesa do organismo. Mari não os produzia em quantidade suficiente para manter seu pequeno corpo protegido.
Com experiência na área de saúde, Claudia notou que era preciso levar a rotina da filha para dentro do hospital, uma maneira de manter o contato da menina com a vida lá fora. Um jeito também de cultivar o ;potencial saudável; dentro da criança. É constante nos depoimentos de pais de jovens pacientes a enorme vontade de trocar de lugar com os filhos. Claudia também sentiu isso.
Sessões de quimioterapia, boa resposta ao primeiro protocolo, uma primeira recidiva, radioterapia, cateter, mielogramas e, em 2008, depois de um desejado curso de mergulho, a notícia ruim: uma recidiva extremamente agressiva. No depoimento, Claudia narra os olhares de medo, raiva e angústia de Mari, a dificuldade em convencer a filha a, mais uma vez, enfrentar um tratamento doloroso para tentar um transplante de medula. A pega aconteceu, mas Mari não se recuperou. Em uma conversa franca e doída, ela explicou à mãe que não aguentava mais, que estava pronta. Aos 12 anos, em setembro de 2008, ela partiu.