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Sexo feminino move o agronegócio com pulso firme e paixão

Na reportagem que fecha o mês da mulher, contamos a história de três produtoras rurais que, em um universo quase sempre masculino, tomam a frente da produção, do plantio à colheita, com pulso firme. O que as move? A paixão pelo campo

Renata Rusky
postado em 25/03/2018 07:00
É fato que as mulheres estão se infiltrando cada dia mais em áreas tradicionalmente masculinas. E o universo do agronegócio é um que está repleto da força feminina. Em todas as etapas da cadeia produtiva, há mulheres trabalhando, inovando, economizando e agregando valor aos produtos. Se, antigamente, elas nasciam e moravam no campo, mas cuidavam das tarefas domésticas, hoje, pesquisa da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) mostra que mais da metade delas mora na cidade e vai à roça para trabalhar.

E mais: quase 60% são proprietárias ou sócias do empreendimento. Coordenadora de sustentabilidade da Abag e orientadora do estudo, Juliana Monti acredita que as mulheres estão aumentando substancialmente sua participação profissional em todos os setores da economia nas últimas décadas. Com o agronegócio, não seria diferente.

;A inserção profissional delas traz um benefício para a sociedade no que diz respeito a questões como inclusão e igualdade de gênero, principalmente quando falamos de cargos mais altos em empresas. Além disso, é sempre importante explicitar os preconceitos e as dificuldades que as mulheres ainda passam nos cargos de liderança;, afirma.

Entre os principais desafios da mulher que trabalha no campo, Juliana cita o respeito à liderança e a credibilidade dela na posição profissional que assume. Na pesquisa da Abag, mais de 44% das mulheres que participaram afirmaram que o preconceito é evidente. Apesar de sentirem a desconfiança, elas continuam seguindo em frente e assumindo as funções com dedicação.

Segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV), as mulheres já são um terço dos trabalhadores do agronegócio. O número inclui pesquisadoras, funcionárias de empresas de insumos e quem está no dia a dia do campo.

Mas a maioria das mulheres ; 70% ; participa da administração do negócio. Vale ressaltar que estão excluídas desses cálculos aquelas inseridas no segmento da agricultura familiar, na qual a quantidade feminina e masculina é bem mais equilibrada.

Comparada com os homens, pesquisa da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio, divulgada no início do ano, mostrou que a participação de mulheres na administração de propriedades rurais no Brasil passou de 10%, em 2013, para 30% no ano passado. Na década de 1970, apenas 8% dos estabelecimentos agrícolas pertenciam a mulheres, de acordo com o órgão da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO). Em 2013, saltou para 13%.

Segundo a FGV, em geral, elas ainda ganham menos que os homens, cerca de 78,3% do que eles recebem. Mas a situação ainda é boa se comparada com os outros setores da economia no Brasil, em que a mulher tem apenas 76,2% da remuneração masculina. De acordo com os pesquisadores, essa diferença entre as médias brasileira e a específica do setor foi possível porque o agronegócio, entre 2012 e 2017, diminuiu as contratações informais de mulheres em cerca de 5% ao ano.

Trocando a França pelo campo

A bióloga Vanessa Silvério, 35 anos, trabalhava com consultoria ambiental para o governo, quando, há quatro anos, o pai dela resolveu vender a fazenda que tinha havia 12 anos, a 170km de Brasília. A mãe de Vanessa estava feliz com a decisão do marido. Apegada à cidade, achava que a propriedade dava muito trabalho. A alegria da matriarca durou pouco: Vanessa resolveu que compraria a fazenda.

Para a mãe, a decisão da filha tinha ainda um agravante: a equipe com quem a bióloga trabalhava estava fechando contrato com uma empresa da França. Vanessa trocou a Europa, onde um dos colegas permanece até hoje, pelo campo. ;Eu estava cansada de depender dos outros para ganhar dinheiro;, justifica.

O pai de Vanessa sempre quis que algum dos filhos se interessasse pela fazenda, mas isso nunca havia acontecido. Sugeriu adiantar a herança de Vanessa para que ela comprasse só a parte dos irmãos. Determinada, ela não quis. ;Eu não gostava da ideia de herdar. Eu queria que isso aqui fosse meu por mérito;, explica.

Vanessa conseguiu que dois amigos entrassem como sócios. Mas apenas investidores: não colocam a mão na massa. Um deles até vai de vez em quando ao local, mas só para curtir. E o pai aproveitou que alguém da família tocaria a fazenda para ficar com uma parte dela, mas também não frequenta como antes.

Ela costuma se mudar para a fazenda no fim de outubro, quando começa o plantio da soja, volta para casa, em Brasília, para as festas de fim de ano. Passado o réveillon, muda-se de novo para a roça e fica até maio. ;Acho que não aguentaria ficar o ano inteiro, sentiria falta de um cinema, um restaurante. Mas, nesse ritmo, eu gosto. Não sinto falta de nada;, diz.

Como ela está sempre longe, os amigos costumam visitá-la. A propriedade tem uma cachoeira de facílimo acesso e muito atrativa em um dia de sol. Quando há algum evento mais importante em Brasília, no meio da colheita, como um casamento, ela vem e depois volta.

Atualmente, ela não está em um relacionamento sério, mas, nos últimos quatro anos, quando tinha um namorado, o esquema era o mesmo dos amigos. ;Vem no fim de semana. Para ficar comigo, tem que gostar, porque eu preciso ficar aqui. É difícil largar com um gerente. A gente investe muito para não cuidar;, reflete. E o trabalho não acaba. ;Uma vez, um amigo me disse que o nome é fazenda porque a gente passa a vida fazendo alguma coisa. Sempre tem algo pra fazer;, brinca.

São 1.182 hectares, mas nem todo o terreno é plano. Só metade pode ser usada para plantio. Vanessa pretende expandir, mas, por enquanto, a área plantada é de 200 hectares. Ela produz soja. Além disso, avalia aumentar a quantidade de cabeças de gado. Eram 80, mas o mercado estava bom para que ela se desfizesse de algumas, então, vendeu 60 e permanece só com 20. ;Um bom investidor não aplica tudo em uma coisa só;, esclarece.

Já com a fazenda na ativa, ela descobriu formas de comprar insumos mais baratos para o plantio e como não estocar a soja depois de colhida, já que não tem espaço para isso. Precisou estudar muito para chegar lá. Um mestrado na UnB ajudou muito, embora, no fim, ela não tenha defendido a tese porque estava envolvida demais com a fazenda.

;Eu comecei porque estava com um contrato com a Petrobras em que precisava avaliar o impacto ambiental da cana-de-açúcar, mas precisei estudar muito a parte econômica;, relembra. Outra estratégia para aprender foi sair perguntando sobre tudo a todos que conhecia. ;Eu enchia o saco dos vizinhos;, conta. Graças a tudo isso, conquistou mais investidores.

A vida no campo, para ela, é bem diferente da cidade. Ela nota que, lá, as pessoas não se veem como adversárias, mas como quem quer fazer o agronegócio crescer. ;Já me emprestaram máquina, vieram me dar dicas. Todos estão dispostos a ajudar: contam o que dá certo, o que dá errado. Se não se ajudar, é difícil crescer. Como não tem nada por perto, se quebra uma máquina, você não está em cinco minutos numa loja para resolver. Aí vai ao vizinho, pega uma peça emprestada e depois devolve;, conta.

Uma paixão chamada café

A família de sete pessoas ; pais e cinco filhos ; compõe o conselho de uma empresa formal: uma fazenda que fica a 60km de Brasília, no município de Cristalina. Dos cinco irmãos, só um é homem e só uma não participa tão ativamente dos negócios, pois mora fora do Brasil. O irmão era o mais envolvido com todas as culturas plantadas nas terras familiares, até que, há quatro anos, as lavouras de café passaram para as mãos de umas das irmãs, a advogada Cristiane Zancanaro, 40 anos. ;Café é minha paixão e ele não estava dando conta, porque estava ficando grande demais.;

Anteriormente, Cristiane trabalhava com análise de contratos e no departamento de pessoal da fazenda ; ela se orgulha de hoje mais de 30% dos funcionários serem mulheres. A advogada acabou assumindo também os 900 hectares do cafezal. E, em pouco tempo, tem conseguido revolucionar a plantação. Antes, a produção se limitava ao café comum. ;Nós descobrimos que tínhamos também café especial depois de um experimento meu: resolvi secar o grão no sol e na sombra e deu uma cor diferente. Ganhamos pontos a mais e o nosso café foi classificado como especial;, explica.

Na primeira safra após descobrir que produziam café especial, Cristiane ganhou o prêmio regional Ernesto Illy de Qualidade do Café para Espresso ; importante premiação da cafeicultura nacional. ;Eu recebo uma vez por mês um consultor técnico que vai vistoriar as pragas na lavoura. Tenho que checar tudo com o meu gerente de produção diariamente e ainda visito cafeterias para apresentar o meu produto. É o olho do dono que engorda a boiada;, afirma.

Mil e uma atribuições

E Cristiane não para. Agora, quer transformar uma das áreas em orgânica, o que deve levar três anos. Ela é otimista, mas pretende respeitar a natureza: ;A lavoura é soberana, não sabemos como vai responder, mas é outro sonho meu;.

Todo esse trabalho é conciliado com o cuidado com os três filhos, de 10, 7 e 4 anos. A agenda dela depende diretamente das deles: se têm prova, precisa estudar com os garotos; se têm reunião na escola, é o triplo de professoras com quem conversar; e se é dia de eles almoçarem em casa, faz questão de estar junto. Além disso, arruma tempo para fazer exercício, ao lado da mãe, com personal trainer. ;É difícil pra mim? É. Sou empresária, advogada, mãe, filha. Tenho que administrar uma rotina bem puxada;, admite.

Em geral, vai à fazenda duas vezes por semana, mas, na época de colheita, chega a ir até mais de três vezes. Também nesse período, tenta incluir os filhos e transformar o negócio em lazer para os pequenos. ;Eu os levo nos fins de semana. Eles colhem, separam o vermelho do verde, secam, descascam e depois levam para os avós. Meus pais e meus avós já eram fazendeiros, mas meus sogros, que não têm essa tradição, ficam muito felizes de tomar o café dos netinhos;, emociona-se.

Mas a rotina foi ainda mais difícil. Cristiane queria entender todo o processo pelo qual o café passa até chegar à cafeteira e dela à xícara. Saber como o aroma e o gosto entram pelas narinas e pela boca de cada um. Deixou os filhos mais velhos em Brasília com o pai e foi com o caçula, na época com apenas 7 meses, fazer um curso de barista em São Paulo. ;Porque, para eu entender o meu produto de verdade, tinha que estudar. Fiz também curso de análise sensorial. Não adiantava eu saber só do café verde;, conta.

Recentemente, a produtora realizou um sonho: comprar o próprio torrador. Antes, torravam no vizinho, o que dificultava o controle de qualidade. ;Cada grão tem um perfil de torra que vai dar o melhor café e, tendo o nosso torrador, conseguimos entregar sempre igual, sem variação de qualidade;, afirma. O apego com a nova aquisição é tão grande que até já o apelidou. Com nome de mulher, claro: Taninha.

Elas na cafeicultura

A participação das mulheres na produção de café é significativa. No ano passado, a Embrapa Café lançou um livro idealizado pela Aliança Internacional das Mulheres do Café Brasil (IWCA-Brasil), uma organização internacional sem fins lucrativos criada, em 2003, a partir do encontro de mulheres da indústria do café dos Estados Unidos e Canadá com produtoras de café na Nicarágua. A corrente brasileira da IWCA foi fundada em 2010 por Josiane Cotrim, que, inclusive, visitou a fazenda de Cristiane há cerca de duas semanas.

No livro, foi estabelecido o perfil da mulher no setor cafeeiro. Para isso, foram recolhidos dados de 737 mulheres, que responderam a um questionário (on-line e off-line) entre julho de 2016 e abril de 2017. Segundo o levantamento, elas estão na faixa etária de 26 a 59 anos, e, desse grupo, a maior concentração é de mulheres jovens, entre 26 e 35 anos. Quase 90% delas são proprietárias da terra.

Segundo a atual vice-presidente da IWCA no Brasil, Miriam Monteiro, na aliança, há participantes de toda a cadeia agroindustrial do café, além de pequenas produtoras, baristas e pesquisadoras. ;É bem pulverizada e aberta a todos, mas um dos nossos principais objetivos é apoiar mulheres com menos oportunidade, que não estão tão bem posicionadas no mercado;, explica.

A organização está no processo de contabilizar a quantidade de associadas, mas Miriam supõe que seja algo entre mil e duas mil mulheres. Há também cafés vendidos com o selo da Aliança, mas eles ainda são poucos. ;Para ter o selo, temos três critérios: é essencial ser participante da organização, que a produção siga boas práticas agrícolas, com responsabilidade socioambiental, e que a propriedade, o café e todas as notas fiscais relacionadas a eles estejam no nome da mulher;, enumera Miriam.

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