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Como conviver com doenças raras: pacientes revelam suas lutas

Apesar das adversidades, eles encontram meios de viver plenamente

Renata Rusky enviada especial
postado em 29/04/2018 07:00 / atualizado em 19/10/2020 11:11
O publicitário Pedro Rafael da Costa, 30 anos, está afastado do trabalho há um ano. Ele sofre de retocolite ulcerativa, uma doença inflamatória intestinal crônica autoimune. O primeiro desafio pelo qual passou é comum à maioria das pessoas com uma patologia rara: o diagnóstico, que só foi dado depois de mais de um mês de diarreia e idas a inúmeros médicos. Eles acreditavam que o problema se tratava apenas de uma infecção intestinal.

“Passei um mês sem poder sair de casa. Mexia o abdômen, já precisava ir ao banheiro. Comia alguma coisa, corria para o banheiro. Até que um dos médicos pediu uma endoscopia e veio a suspeita”, relembra Pedro. O doutor e professor da Universidade de Brasília (UnB) Natan Monsores de Sá, coordenador do Observatório de Doenças Raras da universidade, explica que muitos profissionais da saúde só tiveram contato com certas doenças em livros e textos, durante a faculdade.

“Ocasionalmente, esbarram com elas no internato, na residência, principalmente nos hospitais universitários. Em um pronto-socorro, numa unidade básica de saúde, em que se trabalha basicamente com anamnese, histórico clínico, é difícil mesmo identificar que se trate de uma doença rara. Vai suspeitar de um mal comum, que aparece com mais frequência”, justifica.

No caso da retocolite, ela pode ser confundida com uma simples infecção, com a doença de Crohn, também rara e cuja inflamação envolve todo o intestino, e com a síndrome do intestino irritável, que nada tem a ver com inflamação. Isso porque os sintomas são comuns: dores abdominais e diarreia, urgência para evacuar e aumento na frequência dos movimentos intestinais. No caso da retocolite e de Crohn, ainda pode haver hemorragia retal.

Milhões de raros

Conhecer alguém com uma doença rara parece difícil. O adjetivo passa a impressão de que são poucos, afinal, por definição, ela afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 para cada 2 mil pessoas. Atualmente, há entre 8 e 9 mil patologias raras conhecidas. Portanto, embora cada tipo tenha poucos casos na população, somados, formam uma grande comunidade de pacientes.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), há cerca de 400 milhões de pacientes com doenças raras no mundo. Segundo pesquisa da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), lançada em março, estima-se que, no Brasil, esse número chegue a 13 milhões. Cerca de 80% das patologias são de origem genética, enquanto as demais têm causas infecciosas, virais ou degenerativas.

Até hoje, a maior parte dos tratamentos é feito com drogas paliativas, que tratam apenas os sintomas, e serviços de reabilitação, como fisioterapia. Menos de 2% dos casos recebem medicamentos capazes de interferir na progressão da doença.

Difícil tratamento

Dos aproximadamente 100 medicamentos disponíveis para doenças raras, apenas 30 têm protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para uso no Sistema Único de Saúde (SUS). “Muitas vezes, uma pessoa nasce e morre com uma doença que passou a vida tratando os sintomas e nunca a base”, queixa-se Maria Cecília Oliveira, presidente da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag). 

O resultado, segundo ela, é a judicialização. “Os tratamentos para doenças normalmente são órfãos, únicos no mundo, e têm que passar primeiro pelo registro da Anvisa antes de ter um protocolo clínico. A maioria deles já têm registro, mas ainda não estão incluídos do SUS.”

O professor Natan explica que, com os medicamentos em geral, são feitos estudos clínicos. Eles gerarão resultados que poderão dar a razão do custo efetivo. “Mas com as doenças raras é complicado, porque há doença que afeta apenas 10 pacientes no mundo. Então, em vez de olhar só a questão econômica, deve-se observar os anos de vida, a redução de internações, a melhora de qualidade de vida”, enumera.

Restrições

Apesar das adversidades, eles encontram meios de viver plenamente 
Depois da primeira crise, Pedro Rafael passou a tomar anti-inflamatório continuamente e corticoide. Após estabilizado, deveria parar o corticoide. Como não estava bem informado sobre a doença, o publicitário imaginou que não voltaria a passar por tudo aquilo de novo. Mas passou. Várias vezes: em 2007, em 2010, em 2011 e no ano passado, quando precisou se afastar do trabalho. “No início, eu fiquei mal por não trabalhar, mas hoje eu entendo que preciso cuidar da minha saúde.”

Depois da segunda crise de 2007, o publicitário passou a se automedicar. Até 2010, ele tomava corticoide sem parar. “Era como aspirina para mim. Eu precisava dele para poder ir à faculdade, ao estágio.” Mas, à noite, a diarreia sempre voltava. Programas comuns para a maioria dos jovens eram impossíveis para ele: um cinema, um bar com os amigos. “Eu também não podia viajar, fazer planos de um intercâmbio. Nada.”

Em 2011, diante de mais uma crise, ele foi internado no Hospital Universitário de Brasília (HUB) e, a partir de então, passou a tomar o fleximabe, um medicamento biológico de alto custo — um frasco custa cerca de R$ 4 mil — administrado por meio de soro. A cada oito semanas, Pedro passava uma tarde no HUB para tomar a medicação.

Por seis anos, ficou relativamente bem, mas passou dois meses sem o medicamento, o que prejudicou o tratamento. Embora não se tenha certeza sobre as causas exatas das crises, sabe-se que há gatilhos emocionais e alimentares, e ele já identificou alguns. “Depois da última crise, estou mais focado na dieta e me consultando com psicóloga para controlar a ansiedade.”

Ele lembra que já teve depressão. “Quando se vai ao banheiro até 25 vezes por dia, é muito difícil ficar com o emocional bem”, desabafa. Na última crise, chegou a perder 18kg.  Mesmo assim, sempre fez piada da própria condição. Não se importa que as pessoas saibam nem que brinquem com isso. 

Sempre conectada

Os pacientes reclamam que as pessoas tendem a resumi-los à doença. Fernanda Martinez, 20 anos, sonha em ser médica, adora ouvir música e ler e tem um dom especial para escrever. O talento fica claro na página que criou no Facebook há quase um ano, “Convivendo com doenças raras”, em que conta aos seguidores um pouco da rotina.

Ela tem angioedema hereditário, doença rara do sistema imunológico que causa ataques episódicos de inchaço — e pode fechar a glote do paciente —, disautonomia e funcionamento inadequado do sistema nervoso autônomo, que é responsável pelo controle das funções inconscientes do corpo.

No caso dela, o sistema cardiovascular é afetado. Além disso, Fernanda tem síndrome de artéria mesentérica, o que lhe causou desnutrição, e passou por um câncer de tireoide na adolescência. Para ela, até tomar banho não é tão simples, pois tem urticária aquagênica — alergia à água. Uma hora antes do banho, toma um antialérgico.

Mas não é porque fala abertamente sobre as doenças e expõe sua realidade que gosta ou aceita ser vista só como a garota com doenças raras e crônicas. “Eu não nego que a doença ocupa uma parte de mim, toma meu tempo e me limitou bastante, mas eu não sou fraca nem invencível. Tenho altos e baixos, como todos. Algumas pessoas acham que sou prisioneira da minha doença, que só sei falar e viver assim e que sou muito frágil.”

Expor-se é questão de sobrevivência. Ali, Fernanda encontra apoio psicológico e também financeiro. Diante de doenças tão raras, os gastos com medicamentos são muito altos, então ela fez uma campanha que já arrecadou mais de R$ 20 mil, cerca de 75% do dinheiro de que precisa. 

400 milhões
de pessoas sofrem com alguma doença rara no mundo.

13 milhões
é o número estimado de pacientes com patologia rara no Brasil.

80%
das doenças raras são de origem genética.

Em cada grupo de
2 mil pessoas, 1,3 tem uma patologia rara. 

Cuidados multidisciplinares

Há casos em que tomar ou não o medicamento é a diferença entre viver e morrer, como salienta o doutor e professor da UnB Natan Monsores de Sá, citando o HPN, cujo remédio muitos pacientes estão há meses sem tomar. Há, porém, casos em que o tratamento farmacológico é apenas uma das facetas do tratamento. “Muitas doenças são incuráveis e a abordagem multidisciplinar vai dar qualidade de vida.”

José Leda, 67 anos, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica em 2005. Os primeiros sintomas, câimbras, apareceram em 2003. Funcionário do Banco do Brasil, viajava o país a trabalho. Hoje, mesmo tetraplégico, não deixou para trás o velho hábito.

Ele conta com o apoio de médicos, neurologistas, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e, principalmente, da mulher, Sandra Mota, 55, a qual José descreve como “um anjo” e que dedica as 24 horas do dia a ele. E tudo isso garante a José saúde e qualidade de vida para curtir o carnaval no Centro Cultural Banco do Brasil, como fez este ano, viajar e até entrar em rio e mar — de cadeira de rodas e tudo.

José conta que conheceu Sandra em 1º de janeiro de 2005, quatro meses antes de receber o diagnóstico. “Eu falei para ela: esse carma não é seu. Se você quiser seguir sua vida sem mim, eu compreendo. Ela disse que não, e aqui estamos até hoje.”
José Leda considera a mulher, Sandra Leda, o seu anjo da guarda
Sandra relata que há quem diga que a esclerose dele é “mais leve”, já que a evolução é lenta. Ela, porém, atribui isso ao cuidado e estímulo que José recebe. Todos os dias, ele acorda, toma banho, veste uma roupa limpa. “Não tem essa de passar o dia de pijama ou deitado.” Além disso, a mulher se esforça para que ele tenha vida social e se sinta incluído.

Por um tempo, José até tomou o riluzol, medicamento usado no tratamento da doença. Mas o remédio não o deixava letárgico. “Quando a terapia não se resume ao remédio, tirá-lo não é um problema tão grande.”

O casal não só recebe amigos em casa, como vai ao teatro, ao cinema e viaja bastante, tanto de carro quanto de avião. Mas sempre se depara com situações chatas, como banheiro de deficiente inadequado ou com pessoas sem deficiência alguma usando; ou vagas de estacionamento para deficientes ao lado do lixo. Para eles, é esse tipo de coisa que faz com que tantos deficientes  fiquem reclusos em casa.

Outra coisa que Sandra avalia como ruim é a falta de cuidado da maioria das famílias com parentes deficientes. “Eles não respeitam as vontades da pessoa”, reclama. “No hospital, a primeira coisa que fazem é me trazer fralda”, conta José. Ele se recusa, insistem e Sandra entra em cena para assegurar que as vontade do marido sejam atendidas.

Luta diária

Presidente da Associação Brasileira Lutando contra ELA (Able), Stanley Abdão teve o diagnóstico da esclerose lateral amiotrófica em janeiro de 2014 — 25 meses depois do primeiro sintoma. Sem voz e reproduzindo seu pensamento com o dedo direito no computador ou na tela do celular, ele afirma que “quem tem ELA tem pressa”.

Stanley estuda direito, participa de palestras e reuniões sobre a doença. “Quando o médico fechou o diagnóstico, meu irmão, que me acompanhava, perdeu o chão. Minha reação foi diferente. Pensei: tenho duas possibilidades. Ou me entregar e esperar a morte chegar ou transformar essa angústia e dor em esperança para mim e outros pacientes”, relembra. Assim, surgiu a Able, com o objetivo de apoiar pacientes de todo o Brasil.

Da Able, surgiu o CCA, cuja sede é em Águas Claras e cujo trabalho consiste em aproximar o paciente de serviços de saúde que podem oferecer diagnóstico e tratamentos de média e alta complexidades. Para isso, contam com uma assistente social, um psicólogo, uma fonoaudióloga, dois nutricionistas, três fisioterapeutas, um terapeuta ocupacional, um odontologista, um enfermeiro, uma advogada e uma secretária. 

Na justiça

Forma rara de anemia hemolítica que destrói a hemácias, os pacientes com hemoglobinúria paroxística precisam entrar na Justiça para receber o medicamente de alto custo que lhes salva a vida, já que não há protocolo clínico dele no SUS. Segundo a Afag, de outubro do ano passado para cá, 13 pessoas já morreram por falta de acesso ao tratamento. O Ministério da Saúde, no entanto, afirma que não houve interrupção do atendimento às 11 mil demandas judiciais da pasta.

Discriminação que marca

Por Alan Rios*

Olhares que julgavam, comentários maldosos sussurrados e preconceito — muito preconceito — foram só o começo da viagem de Theo para o Rio de Janeiro, na volta de Salvador. O neto da coreógrafa Deborah Colker chegou a presenciar pedidos para que ele e sua família descessem do avião por conta de uma mutação genética do garoto, em um caso que ficou nacionalmente conhecido em 2013, quando ele tinha apenas 3 anos.

A condição rara da sua pele faz com que o aspecto e a saúde dela sejam diferentes, com a formação de bolhas e uma fragilidade que a deixa semelhante a uma asa de borboleta, por falta da proteína colágeno 7. Por isso, o nome dessa mutação, a epidermólise bolhosa distrófica, é chamado nos Estados Unidos de butterfly skin, ou pele de borboleta.

Mas os funcionários daquele voo não sabiam de nenhuma dessas informações, exigiram um atestado e optaram pela incompreensão, como conta Deborah: “No acontecido, até um médico, que estava no voo, disse que conhecia a doença de Theo, sabia que não era contagiosa e explicou isso para eles. Essa doença não precisa de atestado médico, mas há um desconhecimento muito grande em relação às doenças raras e isso causa ignorância na sociedade”, diz

Apesar de afetar somente uma a cada 50 mil pessoas nascidas, a mutação de Theo mostrou que é necessário conhecer e compreender mais as diferenças físicas e biológicas, que, mesmo quando desconhecidas, devem ser tratadas com empatia. A coreógrafa lembra do passado para acabar com alguns mitos: “Na época da Aids, por exemplo, as pessoas sofriam muito preconceito, que era algo terrível. Mas acho que são pessoas como o Theo que vão mostrar os verdadeiros valores da vida, fazer do mundo um lugar melhor e trazer evoluções tanto científicas quanto profissionais, sociais e até espirituais”, completa.
 
 
*Estagiário sob supervisão de Sibele Negromonte

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