A crítica de moda americana Vanessa Friedman afirmou, recentemente, que roupas são um dos poucos assuntos universais: todo mundo precisa pensar sobre comida, onde morar e o que vestir. ;Até nudistas têm que pensar no que vestem ; eles apenas rejeitam a ideia de usar alguma coisa.; Quando elas aparecem nas passarelas, as roupas também são vulneráveis às críticas de qualquer um. Afinal, com a moda democratizada, todo mundo tem o direito de opinar.
No início deste mês, Paris recebeu mais uma vez a semana de moda de alta-costura. Para alguns, a haute couture é puro desejo: vestidos deslumbrantes, brilhos e glamour em excesso. Para outros, um nonsense: não há utilitarismo em roupas extremamente engomadas e caras, feitas para apenas algumas dezenas de clientes no mundo inteiro ; encomendadas e sob medida, as peças podem chegar a custar de US$ 10 mil a US$ 100 mil, dependendo da grife.
Contudo, a relevância e o simbolismo da alta-costura se mantêm firmes. Marco Antônio Vieira, professor, pesquisador em artes visuais e curador independente, explica que os desfiles de alta-costura precisam ser vistos, hoje em dia, como um espaço de experimentação.
;Uma vez que a moda se democratizou no século 20, os desfiles de alta-costura mantiveram o privilégio de acesso ao mais alto luxo da artesania, do feito à mão, restrito à elite. A alta-costura é o espaço em que o delírio, o onírico, o fantasioso e o laboratorial se exprimem sem o compromisso com qualquer noção naturalizada de usabilidade.;
A afirmação de Vieira justifica os visuais utópicos e ;não usáveis; vistos na passarela. Exemplos disso são as coleções da Maison Margiela, dirigida por John Galliano, e da estilista Iris Van Herpen, ambos participantes da última edição da semana de moda parisiense. Quando se refere à Margiela, Vieira explica que a marca é o modelo mais emblemático da lógica discursiva associada ao alto luxo. ;Uma coleção aparentemente delirante é considerada por muitos ;feia;. Todavia, é repleta de referências complexas, que apontam para um impossível da roupa, que só a moda que abraça a arte pode tocar. O desfile converte-se em um poema;, comenta.
Futurismo também presente
A holandesa Iris Van Herpen, por sua vez, continua a ultrapassar os limites do design de moda, assim como Galliano. Em suas criações, a biologia, a física e a tecnologia se unem para dar vida a peças futuristas e desejadamente inovadoras, com a combinação de diferentes materiais na construção do vestuário dentro de sua visão estética.
A jornalista e consultora de moda Regina Guerreiro comentou o trabalho da estilista nas redes sociais e afirmou que a única possibilidade de futuro para a moda é a inovação de matéria-prima, fator que Iris tem investido e impressionado o público dentro da alta-costura.
;Ela (Iris) é a única criadora agora que ;comete; uma mudança real na história da moda. Seu ateliê não é bem um ateliê, é uma oficina. A função da alta-costura sempre foi a de laboratório do futuro. E esse tal laboratório fazia tempo que não estava funcionando;, digitou Regina.
Este espaço laboratorial que Regina e Vieira se referem traduz a intenção natural dos desfiles. Em inglês, a palavra é traduzida por fashion show. Ou seja, é literalmente um show, um espetáculo visual. Se não fosse, a moda ali não teria graça ; nem futuro.
Dessa forma, entende-se que a moda na alta-costura não sobrevive só de encomendas superfaturadas feitas por um grupo seleto, mas de conceitos e apresentações simbólicas que servem como estratégia de consolidação das essências das grifes no mercado da moda.
Marco Antônio Vieira esclarece que a inacessibilidade para a maioria dos consumidores é o que constitui a lógica da alta-costura. ;Marcas como Chanel e Dior usam a alta-costura como uma ferramenta de espetaculização de sua capacidade de produzir luxo. Assim, ao comprar um perfume (de uma das grifes), uma mulher pode, sem gastar aquilo que se cobra por um modelo de alta-costura, aproximar-se da ;aura; que a exclusividade associada à alta-costura daquela maison é capaz de criar e emanar.;
Noivas negras
Uma particularidade dos desfiles de alta-costura é que eles sempre finalizam com uma proposta de vestido de noiva. A cada temporada, a expectativa se vira para quem vai desfilar no grand finale. Neste mês, a Chanel deu espaço para a modelo sudanesa Adut Akech. A modelo ; que também desfilou para Valentino, Givenchy, Fendi e Dior ; é a segunda negra a fechar um desfile da Chanel em 14 anos. Em 2004, apenas a também sudanesa Alek Wek esteve na mesma posição. Especulam os críticos que a razão disso vem de o próprio Karl Lagerfeld, diretor-criativo da marca, não ser um superfã da diversidade nas passarelas.
Além da quebra de tradicionalismo, Adut Akech representa um sonho de várias meninas como ela. Nascida no Sudão do Sul, mudou-se para a Austrália aos 7 anos de idade, como refugiada. Fez sucesso como modelo desde cedo e hoje, aos 18, é a new face mais procurada pelas grifes, sendo a favorita de Yves Saint Laurent por duas temporadas seguidas.
Em um post no Instagram, Adut se expressou dizendo que ser a noiva da Chanel foi um sonho realizado. ;Não acredito que fiz história sendo a segunda noiva negra da alta-costura da Chanel. Essa é a minha mais orgulhosa conquista. Esse foi um momento especial que eu lembrarei para sempre enquanto eu viver. Agradeço a todos que estiveram ao meu lado e me apoiando sempre. Vocês realmente me motivam a ir atrás dos meus sonhos todos os dias.;
*Estagiária sob supervisão de Sibele Negromonte