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A incrível jornada da paternidade

Mesmo vivendo em uma sociedade machista, alguns homens provam que lugar de pai é junto dos filhos e cuidando da casa

Amanda Ferreira - Especial para o Correio
postado em 22/07/2018 08:00 / atualizado em 19/10/2020 15:32

 
Mãe, dona de casa em tempo integral e heroína. Na segunda edição do filme Os Incríveis, quem rouba a cena é a Mulher Elástica. Mas como combater o crime e fazer todas as coisas que, supostamente, seriam funções da matriarca? A animação relata de forma leve — e surpreendente — o incentivo do senhor Incrível quando a esposa recebe a proposta de trabalhar fora: ele passa a cuidar dos filhos e da casa em tempo integral, lidando com situações comuns da infância e imprevistos do lar. E lá se vai ela.

Esse roteiro, mesmo que de filme, não fica distante da realidade vivida por muitas famílias reais. Apesar de certos machismos e preconceitos que cercam essa questão, basta um olhar mais atento para notar que a situação é mais comum — e, acredite, normal — do que se imagina.

“Houve uma mudança a partir do momento em que a mulher também se inseriu no mercado de trabalho e criou independência. A casa e os filhos agora passam a ser uma responsabilidade mútua, assim como as finanças”, avalia Lia Clerot, psicóloga especialista em terapia familiar sistêmica.

Para ela, a quebra de paradigmas com relação ao modelo familiar pode ajudar tanto no desenvolvimento das crianças quanto no da própria família. “Sabemos que o cuidado do pai é tão importante quanto o da mãe. E, no geral, com as tarefas divididas, existe menos estafa física e mental de ambos.”

Ainda que seja um bom começo, a especialista ressalta que existe um longo caminho pela frente: muitas mulheres abrem mão da carreira e do emprego para cuidar das crianças, por medo ou insegurança com relação a opiniões.

Filhos felizes

Um estudo feito pela Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, apontou que as mães que trabalham fora são mais felizes e saudáveis do que aquelas que ficam em casa. A conclusão foi tomada após pesquisadores acompanharem 1.364 mães durante os 10 primeiros anos de vida de seus filhos.

Aqui no Brasil, uma pesquisa realizada pela psicóloga Cecília Russo Troiano com 500 crianças e jovens — metade filhos de mães que trabalham e metade de mães que ficam em casa — indicou que os filhos de profissionais são ligeiramente mais felizes e demonstram ter mais orgulho das mães do que dos pais. Ela aborda essas questões no livro Aprendiz de equilibrista: como ensinar os filhos a conciliar família e carreira.

“A sociedade ainda tem o ideal de que o homem não tem plena condições de cuidar de uma criança sozinho, e isso não é verdade. É uma mentalidade que precisa ser trabalhada e internalizada”, afirma Lia.

E relatar questões do cotidiano em um filme, mesmo que voltado para o público infantil, pode ser uma ótima forma de romper certas crenças ou machismos — passar para os pequenos o que seria o reflexo da realidade e desenvolver ideias para o futuro, assim como colocar aquela pulga atrás da orelha no modelo de pensamento dos adultos.

Dessa forma, segundo ela, a forma mais fácil de combater certos preconceitos é dando o exemplo. “Sabe aquele jeitinho que só a mãe tem? O pai também pode aprender e desenvolver todas as tarefas, igualmente”, ressalta.

Plantando valores

Quem escuta as histórias de Luciana Gomes, 34 anos, e do marido, Rafael Portieri, 35, logo entende que a dinâmica da família é diferente. A sintonia do casal parece não dar espaço para qualquer tipo de insegurança ou machismo no modelo combinado por ali. Juntos há 17 anos e casados há 10, os dois garantem que cresceram e evoluíram juntos, almejando inúmeras coisas para o futuro. Hoje, com a pequena Letícia, de 7 anos, colocam em prática certas questões.

“Começamos a namorar muito cedo e uma das preocupações da Luciana era ser mãe e ter que ficar em casa. Mas isso nunca foi uma expectativa para mim. Queria que ela crescesse, evoluísse. As coisas acabaram como são de forma natural”, afirma o servidor público.

Mesmo antes de engravidar, a auditora fiscal trabalhava viajando e, com a chegada da filha, as coisas continuaram da mesma forma: quando a menina completou os dois primeiros anos de vida, lá se foi Luciana para a aventura de trabalhar longe da bebê.

E ela garante que apoio do marido não faltou. “Mesmo sendo um pai bastante presente, ele viu nas minhas viagens a oportunidade de estar ainda mais perto dela”, conta a mulher. Os dois relembram que Rafael, por sempre ter tido um pai companheiro, em uma família fora do tradicional, levou isso para o lar sem esforço. Viagens de uma semana ou mais, para dentro ou fora do Brasil, são constantes — Luciana já chegou a ficar mais de um mês fora, e o marido cuidou tanto da casa quanto da pequena, sem nenhuma ajuda.

Como resultado, o apego. Letícia é tão apegada ao pai que qualquer distância já é motivo de saudade. “Tem épocas que ele fala que eu dou mais trabalho do que ela”, brinca a mãe. “É maravilhoso. Quando estamos juntos, consigo dizer a ela o quanto eu a amo e como ela é importante para mim. Fazemos bagunça do nosso jeitinho e aproveitamos para criar mais confiança”, garante Rafael.

Para os dois, a dinâmica da casa é uma forma de mostrar para a filha, ainda pequena, como as coisas devem ser. “Dou todo exemplo que posso, para que ela busque essa referência no futuro em um companheiro carinhoso, que entenda que a mulher não precisa se dedicar somente à casa e aos filhos e que ela pode ser o que quiser”, completa o pai. 

"É maravilhoso. Quando estamos juntos, consigo dizer a ela o quanto eu a amo e como ela é importante para mim. Fazemos bagunça do nosso jeitinho e aproveitamos para criar mais confiança"
Rafael Portieri, servidor público

Amor compartilhado

Pequenos gestos se encarregaram de mostrar o que as palavras da mãe não conseguiram explicar. Enquanto Greyce Aires, 28, ainda pensava o que falar sobre a relação do marido, o músico Mario Neto, 29, com o filho João Vitor, 2, os sons e a conversinha no fundo já descreveram toda a união da dupla: com instrumentos musicais na mão e combinações de toque, o pai compartilhava sua paixão pela música com o pequeno, sempre atento. Não só nisso, mas em tudo o que fazem, a mãe garante que os dois têm muito em comum.

Os acordos entre a família sempre foram bem estabelecidos — o casal trabalharia fora, em horários alternados, para conseguir acompanhar o desenvolvimento de João. Pela manhã, o menino aproveita o carinho da mãe e, à tarde, o colo do pai. O modelo, segundo os dois, funciona com tranquilidade. “Apesar da dificuldade financeira que é trabalhar apenas em um período, nada paga o tempo que investimos no nosso filho. Ele é uma criança muito inteligente e aprendemos com ele todos os dias”, diz a nutricionista.

Do ferro de passar às brincadeiras no campo de futebol, Mario é quem cuida de cada detalhe. “Ele faz de tudo, assim como eu sempre fiz. É um verdadeiro companheiro e acho que isso é um exemplo para o João, da pessoa que queremos que ele seja.”

Cuidados especiais

 

 

Na casa da estudante Juliana Jorge, 28, e do bancário Jessé Jorge, 36, as coisas também funcionam de forma compartilhada. Mas ali, mais do que dividir tarefas, o casal se uniu com muita cumplicidade e altruísmo. A história é de emocionar: quando o filho Miguel, hoje com 7 anos, teve um acidente vascular cerebral (AVC), aos 2, o susto fez com que toda a rotina fosse repensada — a partir daquele momento, o pequeno precisaria de cuidados especiais por toda a vida.

Sem pensar duas vezes, Juliana deixou de trabalhar para dar atenção ao momento. Foram mais de quatro anos vivendo exclusivamente para a casa e os cuidados do filho. “O Jessé era presente e ajudava no que podia. Sempre atento, preocupado e ligado. Nos fins de semana, era ele quem assumia”, conta ela. Há algum tempo, quando quis voltar a estudar, o marido foi o primeiro a dar apoio e a pensar em diferentes soluções para o cuidado de Miguel.

Hoje, os dois se revezam entre trabalhos, estudos, consultas e idas à escola. Programação que, para eles, assim como para tantos outros, é mais do que comum. “Não é nenhum esforço. Fizemos o filho juntos e temos que cuidar dele juntos. Nunca vi como se fosse algo exclusivamente dela. Passar um tempo com ele pode ser exaustivo, mas é sempre muito bom e alegre”, garante Jessé.
 
Segundo ele, poder ajudar no desenvolvimento tanto da família quanto no do filho é enobrecedor. “Acredito que tudo envolve acordos e muito carinho. Não critico as famílias que seguem o modelo mais tradicional, mas acho que quem não participa ativamente da criação dos filhos tem muito a perder.”

Lugar de pai é…

 

 

A vida tratou logo de surpreender quem cresceu ouvindo aquela história de que a mulher deveria ficar em casa para deixar tudo em ordem. De família tradicional, Luana Mello, 25 anos, não esperava que seria a primeira a romper com os costumes que lhe foram ensinados. A chegada da filha Verônica, hoje com 1 ano e 7 meses, virou de cabeça para baixo a rotina de casa.

Ela, que não trabalhava, conseguiu um emprego e viu nele a chance de ajudar o marido, Júlio César, 27, na época desempregado, com as finanças da família. Logo, ele assumiria os cuidados da casa e da pequena, enquanto ela ficaria o dia fora — acordo esse que, de tão certo, se mantém até hoje. “Para mim, foi a melhor coisa, porque nunca imaginei. E ele está se saindo um ótimo dono de casa. Faz tudo com perfeição e muito carinho. A Verônica é tão apegada a ele!”, afirma Luana.

Apego esse que é notado em fotos e brincadeiras entre pai e filha. Mesmo pequena, a menina solicita o pai a cada momento, e as gargalhadas são mais que garantidas. “Como eu era muito ligada ao meu pai, acho muito bonito ver o amor dos dois”, compara.

Piada sem graça

Como consequência da nova rotina, o casal, vez ou outra, precisa lidar com comentários ou piadas desagradáveis. Ainda assim, a esposa garante que tudo é levado com leveza. “O Júlio lida bem e leva na brincadeira, porque sabe como isso ajuda no desenvolvimento da nossa filha.”

Apesar de ser diferente do que as famílias estavam acostumadas, Luana teve total aprovação das mulheres de sua vida, enquanto os homens ficaram com o pé atrás. “Acho que faz parte e é questão de entender que cada família faz como acha melhor. O que vale, no final, é uma criação de amor”, finaliza.

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