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Dez mil horas de prática ajudam, mas não garantem a criatividade

Obras e produtos criativos não são meros resultados de expertise. Eles precisam ser originais, surpreendentes e fazer diferença por serem úteis

*Ricardo Teixeira
postado em 11/09/2018 12:37

Obras e produtos criativos não são meros resultados de expertise. Eles precisam ser originais, surpreendentes e fazer diferença por serem úteis

As pessoas criativas não são necessariamente experts em uma determinada atividade. Em vez de praticar exaustivamente um caminho já conhecido, elas criam sua própria rota. Picasso tinha habilidades de desenhista de dez mil horas antes de fazer suas obras desencontradas e geniais. A prática ajuda muito, mas não é tudo.

Existem atividades mais dependentes da prática do que outras. São atividades em que as regras para ser um ;virtuose; já são bem estabelecidas. Podemos citar o xadrez, o esporte e a performance musical. De qualquer forma, sempre existirá o espaço mágico da criatividade. De um lado, temos o criador que rompe com o já conhecido; do outro, o incrível intérprete. De um lado, temos um Garrincha; do outro, Carlos Alberto Torres.

Obras e produtos criativos não são meros resultados de expertise. Eles precisam ser originais, surpreendentes e fazer diferença por serem úteis. Originais porque os criadores transcendem o virtuosismo e vão além do repertório padrão. Fazer diferença é fundamental, pois o criador deve satisfazer necessidades. O iPhone não seria um sucesso se não resolvesse problemas. Ser surpreendente não só para uma ou outra pessoa, mas para quase todo mundo. As descobertas de Galileu são um bom exemplo.

Elenco abaixo 10 evidências que mostram que a prática e experiência não garantem a criatividade.

; A criatividade é frequentemente cega. O criador não tem certeza se sua ideia será aceita.

; O processo criativo é errático. Shakespeare escreveu Hamlet aos 38 anos de idade e logo depois escreveu obras que não foram tão agraciadas. Entretanto, uma pesquisa recém-publicada pela revista Nature mostra que entre cientistas e artistas existe uma onda de produtividade acima da média que dura uns cinco anos. Estamos falando de qualidade e não de quantidade, e essa onda pode acontecer em diferentes fases da vida.

; A regra dos 10 anos de prática nem sempre é verdadeira. Um estudo destrinchou o percurso de 120 compositores clássicos e mostrou que uma década de prática é uma condição frequentemente necessária para as primeiras grandes criações. Entretanto, alguns compositores demoraram menos, enquanto outros muito mais.

; Talento ajuda muito. Se definirmos talento como a velocidade com que uma pessoa adquire expertise, podemos dizer que as pessoas criativas são mais talentosas. Precisam de menos tempo para alcançar esse nível de expertise e, logo em seguida, já viram o disco e passam a sobrevoar o desconhecido.

; O tipo de personalidade também ajuda. Pessoas criativas não se conformam com o arroz e feijão, não costumam ser convencionais, gostam de correr riscos e não raramente têm alguma psicopatologia.

; Os genes também influenciam. Calcula-se que de um terço a um quarto do desempenho depende da carga genética do indivíduo, e isso repercutirá no poder criativo. É claro que os fatores ambientais influenciam e muito.

; Os criativos costumam ter interesses amplos. Cientistas bem-sucedidos e criativos têm vários hobbies e interesses. Galileu era fascinado pelas artes, especialmente a música e literatura.

; Excesso de expertise pode inibir a criatividade. Mais nem sempre é melhor.

; O olhar de fora tem suas vantagens criativas. Um querido professor me dizia que, quando suas ideias no laboratório estavam pouco criativas, ele ia para a biblioteca folhear periódicos de áreas radicalmente distantes e, muitas vezes, saía dizendo eureca.

; Os criativos são bons não só para resolver problemas. São bons também para encontrar problemas. Nem sempre são os mais eficazes, mas seus olhos conseguem enxergar o que ninguém ainda se deu conta.


* Dr. Ricardo Teixeira é neurologista e Diretor Clínico do Instituto do Cérebro de Brasília

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