No cenário, alguns instrumentos musicais dão ritmo à peça. Na plateia, olhares curiosos e ao mesmo tempo desconfiados. Para quebrar o gelo, histórias dos artistas abrem o espetáculo. O auge, porém, chega quando o público entra no roteiro. Com base na narrativa dos espectadores, os atores improvisam cenas que refletem não só o ocorrido, mas os sentimentos de quem está assistindo.
Kayano Augusto Monteiro, um dos cofundadores do grupo, afirma que qualquer história é válida, por mais simples que seja. No Centro Pop, por exemplo, uma carona inusitada abriu a participação da plateia. O pequeno relato foi feito por Iago Dutra, 22 anos, que pulou na traseira de um caminhão para tentar uma carona e, quando descoberto, convenceu o motorista a ajudá-lo a chegar ao seu destino. ;É uma oportunidade que a gente tem de nos assistir;, comentou o jovem sobre a peça.
A narrativa arrancou risos da plateia e abriu espaço para outras narrativas surgirem. Histórias que trazem com elas luta, esperança e aprendizado, como a de Francisco da Silva, 34, que saiu do Nordeste em busca de uma vida melhor em Brasília. Chegando à capital, acabou ficando em situação de rua e, para não cair em um mal caminho, agarrou-se aos livros.
A garra de Francisco se transformou em uma linda cena da peça, expressando e transmitindo todos os sentimentos em volta do acontecimento. Para Francisco, foi muito bom ver sua história sendo interpretada. ;Eles nos colocam dentro da peça para que a gente, que está em situação de vulnerabilidade, consiga enxergar os nossos próprios problemas;, resume.
Pertencimento
Composto por nove pessoas em seu elenco fixo, a maioria com formação em psicologia, o grupo conta com a participalção de Marina Santiago, Débora Machado, Clara Gomes, Henrique Perminio, Paulo Roberto de Macedo, Eric Gonçalves e Bruno Campos, além do cofundador, Kayano Augusto Monteiro, e da fundadora, Valéria Brito.
Assim, a apresentação vai muito além do entretenimento. De acordo com Valéria Brito, o objetivo é estreitar laços e gerar um clima de solidariedade. ;A psicologia estuda o senso de identidade e de pertencimento. Aquilo que consideramos que somos é uma mistura de como nos vemos e como vemos as nossas relações com o restante do mundo. Nessa forma de teatro, conseguimos que as pessoas compartilhem simultaneamente essas duas dimensões;, explica.
Para Valéria, ao contar suas narrativas, as pessoas estão compartilhando o que há nelas de mais próprio, que são as histórias e como elas ligam o indivíduo às outras pessoas.
Público
Kayano conta que o elo entre os atores e a plateia é fundamental para a peça, pois são as histórias deles que compõem o roteiro. ;A gente fica feliz de tocar as pessoas. A gente entende que cada história, por mais simples que seja, é um presente que elas estão nos entregando. E temos todo o cuidado em devolver isso em forma de outro presente, para que ela consiga ver a história dela de um outro ponto de vista;, ressalta.
Valéria explica que muitas pessoas, ao ouvirem a histórias das outras, se emocionam e se identificam. Ela frisa que os outros espectadores não precisam estar necessariamente na mesma situação, mas acabam olhando os fatos com outros olhos. ;Não sou uma moradora de rua, mas eu vivo essa história como um cidadão da cidade e tenho chance de humanizar a minha relação com a desse cidadão que está em situação de rua e que, muitas vezes, eu passo por ele como se não fosse nada;, exemplifica.
As encenações no Centro Pop fazem parte de um projeto do grupo que conta com o auxílio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Nele, além de apresentações teatrais, o Ser a Dois realizará oficinas com os frequentadores e colaboradores do local.