Juliana Andrade
postado em 28/10/2018 09:00
Você já pensou se sua história virasse uma peça de teatro? E, da plateia, pudesse ver seus sentimentos encenados em poucos minutos? Foi essa a experiência vivida pelos frequentadores do Centro de Referência Especializado para População de Rua de Brasília (Centro POP) ao assistir o grupo teatral Ser a Dois.
No cenário, alguns instrumentos musicais dão ritmo à peça. Na plateia, olhares curiosos e ao mesmo tempo desconfiados. Para quebrar o gelo, histórias dos artistas abrem o espetáculo. O auge, porém, chega quando o público entra no roteiro. Com base na narrativa dos espectadores, os atores improvisam cenas que refletem não só o ocorrido, mas os sentimentos de quem está assistindo.
Kayano Augusto Monteiro, um dos cofundadores do grupo, afirma que qualquer história é válida, por mais simples que seja. No Centro Pop, por exemplo, uma carona inusitada abriu a participação da plateia. O pequeno relato foi feito por Iago Dutra, 22 anos, que pulou na traseira de um caminhão para tentar uma carona e, quando descoberto, convenceu o motorista a ajudá-lo a chegar ao seu destino. ;É uma oportunidade que a gente tem de nos assistir;, comentou o jovem sobre a peça.
A narrativa arrancou risos da plateia e abriu espaço para outras narrativas surgirem. Histórias que trazem com elas luta, esperança e aprendizado, como a de Francisco da Silva, 34, que saiu do Nordeste em busca de uma vida melhor em Brasília. Chegando à capital, acabou ficando em situação de rua e, para não cair em um mal caminho, agarrou-se aos livros.
A garra de Francisco se transformou em uma linda cena da peça, expressando e transmitindo todos os sentimentos em volta do acontecimento. Para Francisco, foi muito bom ver sua história sendo interpretada. ;Eles nos colocam dentro da peça para que a gente, que está em situação de vulnerabilidade, consiga enxergar os nossos próprios problemas;, resume.
Pertencimento
Kayano explica que o formato utilizado pelo grupo é uma técnica criada pelo norte-americano Jonathan Fox na década de 1980, chamada Playback Theater. Nela, a plateia conta uma história e os artistas a interpretam de forma espontânea. Kayano ainda esclarece que o formato foi inspirado na cultura indígena, nas quais eles se reuniam para contar histórias e representá-las depois.
Composto por nove pessoas em seu elenco fixo, a maioria com formação em psicologia, o grupo conta com a participalção de Marina Santiago, Débora Machado, Clara Gomes, Henrique Perminio, Paulo Roberto de Macedo, Eric Gonçalves e Bruno Campos, além do cofundador, Kayano Augusto Monteiro, e da fundadora, Valéria Brito.
Assim, a apresentação vai muito além do entretenimento. De acordo com Valéria Brito, o objetivo é estreitar laços e gerar um clima de solidariedade. ;A psicologia estuda o senso de identidade e de pertencimento. Aquilo que consideramos que somos é uma mistura de como nos vemos e como vemos as nossas relações com o restante do mundo. Nessa forma de teatro, conseguimos que as pessoas compartilhem simultaneamente essas duas dimensões;, explica.
Para Valéria, ao contar suas narrativas, as pessoas estão compartilhando o que há nelas de mais próprio, que são as histórias e como elas ligam o indivíduo às outras pessoas.
Público
Kayano conta que o elo entre os atores e a plateia é fundamental para a peça, pois são as histórias deles que compõem o roteiro. ;A gente fica feliz de tocar as pessoas. A gente entende que cada história, por mais simples que seja, é um presente que elas estão nos entregando. E temos todo o cuidado em devolver isso em forma de outro presente, para que ela consiga ver a história dela de um outro ponto de vista;, ressalta.
Adriana Monique Oliveira, 26, recebeu mesmo um presente dos atores. A jovem não conseguiu conter as lágrimas ao assistir à encenação de sua história de luta e esperança de quando veio para Brasília. Na ocasião, ela pôde ver na sua frente um pouco de tudo que passou. ;Fiquei muito emocionada quando ela começou a me representar. Eu senti uma emoção muito grande porque foi bem do jeito que ela expressou. Quando aconteceu tudo, eu achei que não ia conseguir, mas eu encontrei forças, Deus colocou pessoas boas no meu caminho.;
Valéria explica que muitas pessoas, ao ouvirem a histórias das outras, se emocionam e se identificam. Ela frisa que os outros espectadores não precisam estar necessariamente na mesma situação, mas acabam olhando os fatos com outros olhos. ;Não sou uma moradora de rua, mas eu vivo essa história como um cidadão da cidade e tenho chance de humanizar a minha relação com a desse cidadão que está em situação de rua e que, muitas vezes, eu passo por ele como se não fosse nada;, exemplifica.
As encenações no Centro Pop fazem parte de um projeto do grupo que conta com o auxílio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Nele, além de apresentações teatrais, o Ser a Dois realizará oficinas com os frequentadores e colaboradores do local.