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Descubra patrimônios residenciais deixados por renomados arquitetos

A Revista foi atrás de legados da arquitetura brasileira que ocupam a capital e que não estão aos olhos do público

Rachel Sabino *, Marina Adorno - Especial para o Correio
postado em 16/12/2018 08:00

A Revista foi atrás de legados da arquitetura brasileira que ocupam a capital e que não estão aos olhos do público

Em 7 de dezembro de 1987, os múltiplos monumentos que adornam o horizonte brasiliense lhe concederam o título de Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco, o braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Educação, Ciência e Cultura. Construções icônicas, como a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, a Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Aparecida e o Teatro Nacional, são admiradas no mundo inteiro e fazem os amantes da arquitetura modernista suspirarem.

Porém, poucas pessoas sabem do legado arquitetônico que se esconde nas quadras residenciais de Brasília. Arquitetos inesquecíveis como Milton Ramos, Lelé, Zanine Caldas e Oscar Niemeyer também deixaram marcas eternizadas em Brasília por meio de patrimônios privados ; suntuosos e históricos.

Apesar da beleza e do valor indiscutível, as casas apresentadas nas páginas a seguir não são monitoradas ou protegidas por nenhum órgão. Cabe aos proprietários a defesa e preservação do imóvel. De acordo com o Iphan, o acervo residencial brasiliense, embora expressivo e importante, não constitui, a priori, patrimônio cultural brasileiro.

;O reconhecimento de um bem (artefato) como integrante do patrimônio cultural brasileiro pressupõe o cumprimento de premissas e critérios específicos. Condição que o conjunto de edificações residenciais projetadas por esses arquitetos, embora de qualidade arquitetônica indiscutível, não atende. Como, por exemplo: estar relacionado a um processo social de interesse coletivo; ser referência para uma comunidade e ser passível de fruição cultural;, afirmou o órgão em nota.

Concreto monumental

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Apesar de representar a essência da arquitetura brasiliense, o design modernista desta casa causa estranhamento aos que a avistam. Com o passar dos anos, a cidade foi mudando e a residência foi a única da rua a preservar o estilo original e característico da década de 1970 ; época em que foi construída.

Os primeiros donos eram amigos de Milton Ramos, arquiteto que assina o projeto, e habitaram a charmosa residência por 40 anos. O atual morador encontrou a casa em um anúncio na internet e foi amor à primeira vista, mesmo sabendo que estava fora de seu orçamento, não resistiu e agendou uma visita. Conversou com a proprietária, que viu ali os filhos crescerem, saírem de casa e ficado viúva. Ouviu ela dizer, com lágrimas nos olhos, que outros potenciais compradores já teriam visitado o imóvel e perguntado quanto ficaria para derrubar a construção. Ela, porém, jamais aceitaria ver o espaço onde criou os cinco filhos se transformar em entulho.

Ainda em êxtase após conhecer a casa, o atual proprietário mandou um emocionado e-mail, em que explicava que só poderia oferecer um valor abaixo do mercado, mas que prometia honrar o legado da casa. O que ele queria era dar continuidade à história dela com a sua recém-iniciada família. Comovida, a antiga dona aceitou a proposta.

Com as chaves em mãos, o feliz novo proprietário procurou o escritório BLOCO Arquitetos e Associados para fazer um trabalho de restauração e reforma na construção histórica. Quando o arquiteto Daniel Mangabeira viu a casa pela primeira vez, ficou perplexo. ;Eu disse para ele: se você não me contratar para executar essa reforma, eu não faço mais nenhuma casa para você;, brincou.

Apaixonado por história, ele deu início a uma verdadeira imersão no estilo do carioca Milton Ramos, entrevistou a antiga dona e o arquiteto Carlos Henrique Magalhães, que fez uma tese de mestrado sobre Milton. Ele queria recolher o maior número de informações sobre o trabalho do ilustre profissional na área residencial.

Milton trabalhou ao lado de Oscar Niemeyer nos principais projetos de Brasília, foi gerente de obras do Itamaraty e responsável pelo detalhamento do Teatro Nacional. Apesar da respeitável trajetória, ele não é tão conhecido pelo grande público.

Respeito foi a palavra de ordem durante a reforma da casa de 350m;. Tudo foi feito com muita cautela para adaptá-la às necessidades do cliente, porém, sem descaracterizar o projeto original. A casa não estava decrépita, não tinha sequer uma infiltração, mas a última reforma tinha ocorrido na década de 1990. Precisaram refazer completamente as instalações elétricas. As intervenções, porém, foram mínimas. A ideia era reforçar que um bom projeto é atemporal. ;Ela não parece atual, mas tem um componente contemporâneo;, define o arquiteto.

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Pesquisa histórica

Ao longo das pesquisas, Daniel encontrou pouquíssimas informações sobre esse projeto específico. As fotos de família da antiga dona foram fonte importante para a equipe recuperar características originais da casa. Um exemplo é o espelho d;água frontal, que havia sido coberto e gramado. Daniel e o cliente decidiram trazê-lo de volta para complementar a fachada da residência.

Para o arquiteto, a conexão dela com a rua é algo que chama a atenção. Na época da primeira visita à casa, havia um gradil que não aparecia em muitas das fotos. ;Milton gostava de trabalhar essa sutil conexão entre os espaços. A porta dá direto para a rua;, explica. Daniel sugeriu que o gradil fosse removido para manter o projeto original, e o cliente apoiou a decisão ; que muitos veriam como um risco à segurança.

Na parte interna, quase todas as paredes são de concreto aparente, marca registrada da época e do trabalho de Milton Ramos. As paredes eram brancas, mas, uma vez descascadas, revelaram as múltiplas marcas das formas de concreto ; uma grata surpresa para todos os envolvidos. Optaram, então, por lixá-las, impermeabilizá-las e deixá-las à mostra. O piso de ipê maciço, cada tábua com quase 9m de comprimento, foi inteiramente recuperado e se alinha perfeitamente com as paredes. A imponente fachada de concreto também foi revitalizada e meticulosamente impermeabilizada.

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O projeto de Milton Ramos tinha quatro quartos, todos voltados para o nascente e apenas duas suítes. Um dos quartos virou escritório e ganhou um novo banheiro. Dividido, o banheiro de uma das suítes ficou entre os dois quartos. O lavabo foi aumentado, repaginado e premiado. ;Nesse espaço, reinterpretamos o uso do material. Naquela época, tinha muito painel de madeira nos edifícios comerciais. Decidimos trazer isso para o lavabo. Exacerbamos;, enaltece Daniel. Tudo, inclusive a pia, é de madeira. O ambiente foi o vencedor das categorias nacional e regional do 22; prêmio DECA, em 2017.

A sala é ampla e reúne estar, jantar e tevê. Nos múltiplos nichos da estante de MDF, de 2,25m de altura e 8,25m de comprimento, estão objetos que trazem a personalidade da família de maneira afetiva. Porta-retratos, livros, adornos decorativos e até mesmo brinquedos dos filhos pequenos.

O casal gosta do fato de o lar ser simples, coerente e funcional. ;A nossa casa foi feita para ser vivida;, explicam. Desde que se mudaram, passaram a ser caseiros. Humildemente, o atual proprietário reconhece que sua residência é um patrimônio da cidade. ;Agora, ela está comigo. Mas, definitivamente, faz parte do patrimônio histórico brasiliense.; Na parede oposta da estante, eles ;ostentam; com muito orgulho as plantas originais do projeto.

Brutalismo imponente

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Construída em meados dos anos 1970 pelo arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, a mansão de estilo brutalista é ocupada desde 1976. Os antigos proprietários, amigos de Lelé, moraram nela por 40 anos. Durante décadas, a construção funcionava como uma casa de campo e espaço para as férias em família.

Há quatro anos, a mansão foi vendida. Os novos donos viram a necessidade de revitalizar o patrimônio que leva a assinatura de Lelé, que, entre outras obras, projetou parte dos prédios da UnB e os hospitais da Rede Sarah. Na casa, habita ainda o maior painel de azulejos original de Athos Bulcão, em residência, no mundo.

O arquiteto Lutero Leme, do estúdio Arquitécnika, responsável pela reforma, diz que a obra foi um desafio, devido à estrutura da casa. Composto por cinco pilares de sustentação, ele afirma que o projeto é muito ousado para a época. ;A casa só tem um ponto de contato com o solo, por meio de uma grande estrutura de concreto, que tem um tabuleiro atirantado. Ao longo dos anos, ela deformou.; O profissional compara a construção com um balanço. ;A casa se movimenta dois centímetros por dia. Ela sobe e desce, como uma gangorra.;

Essa movimentação de área foi o ponto de partida para todo o projeto de restauração. Os revestimentos tinham de estar preparados para qualquer dilatação, sem formar rachaduras ou fendas. Para isso, Lutero e sua equipe fizeram um estudo detalhado sobre movimentação de paredes e esquadrias.

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Tecnologia funcional

A tecnologia também tinha de estar alinhada com toda a construção e viabilizar funcionalidade e praticidade para os moradores. ;Fizemos um levantamento de todas as necessidades do cliente e de como podíamos adaptar tudo isso dentro da casa, mantendo o externo;, detalha o profissional.

Lutero Leme, do estúdio Arquitécnika, foi encarregado de restaurar o patrimônio residencial deixado por Lelé: tecnologia e sustentabilidade foram pontos cruciais na revitalização

A partir do relatório de alterações, a mansão foi caprichadamente revitalizada. Leme comandou a construção de uma área de lazer, antes inexistente. Para satisfazer os moradores, que, segundo Lutero, são verdadeiros anfitriões, o arquiteto projetou churrasqueira, living, spa, adega, banheiros espaçosos ; com três cabines cada uma, ideais para festas ; e piscina, cujos azulejos foram assinados pelo artista plástico brasiliense João Henrique Rego. Painéis giratórios esculturais, com caráter modernista, foram desenhados e executados por Leme para compor o espaço.

Com aproximadamente 1.960m; de área construída, a mansão tem horta orgânica, gazebo para cultivo de plantas, espaço de convivência específico para tomar chá ; pensado especialmente para a proprietária. O paisagismo, alterado em 100% do projeto original, também foi de autoria de Leme.

Traços marcantes

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Construída para um parente do célebre arquiteto Lelé em 1971, a casa pertenceu à família até 2005, quando os atuais proprietários a compraram. Sempre admiraram a arquitetura e sabiam exatamente do valor histórico do imóvel. São 800m;, incluindo área de lazer e mezanino. Quatro quartos com suíte, sala de jantar, cozinha, sala de estar, garagem e área de serviço compõem a luxuosa construção.

Quando os atuais donos a visitaram pela primeira vez, achavam que estava com um ar muito antigo, que não combinava com eles, e que seria difícil adaptá-la. Coube à designer de interiores Ângela Borsoi e aos arquitetos Mariana Borsoi e Humberto Araque mostrar que era possível e que não seria tão difícil quanto parecia.

A casa não estava na melhor condição, obviamente tinha marcas de uso e algumas infiltrações. Porém, conservada. Segundo Ângela, em geral, os clientes sempre querem derrubar e fazer uma nova casa. ;Dessa vez, mais do que nunca, preservar a identidade da casa era uma prioridade.;

Os arcos e tijolos remetem imediatamente ao estilo de Lelé. É impossível não notar a semelhança com a suntuosa Mansão dos Arcos ; localizada no Park Way. A designer de interiores ressalta que, na verdade, a casa do Lago Sul serviu de laboratório para o famoso espaço, que só foi concluído três anos mais tarde. O que só enaltece o valor histórico do imóvel.

Apesar de sutil, o processo de reforma da casa foi feito em duas etapas. A primeira em 2005 e a mais recente, em 2017. Na fachada não houve nenhum tipo de alteração. Por preferência dos moradores, algumas paredes internas de tijolo foram revestidas e outras, que eram brancas, cobertas com madeira. O objetivo era dar o ar mais contemporâneo desejado pelos novos donos.

Todas as pequenas intervenções foram pensadas e estudadas. Atualmente, os ambientes estão maiores. ;A suíte do casal sofreu a maior intervenção. O jardim interno foi removido para dar lugar ao closet, ao banheiro e ao home office que o casal desejava;, esclarece Ângela.

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Pequenas mudanças

Ao adentrar na sala de estar, o espelho d;água com carpas impressiona. Ele também estava um pouco abandonado e os donos cogitaram fechá-lo algumas vezes. Porém, de acordo com Ângela, ninguém teve coragem de tirar uma característica tão importante da casa. ;Ele tem toda uma proporção e relação ao resto do imóvel. Principalmente ao mezanino;, acrescenta. Para dar ainda mais personalidade, colocaram dentro da água uma escultura do artista popular pernambucano Nicola.

Outra mudança importante foi na área externa. A piscina em formato de feijão foi substituída, mas Ângela se preocupou em manter o alinhamento da anterior. A área da churrasqueira, com home theater e sauna, também está entre as alterações recentes. ;Não quis replicar a casa, mas construir algo que combinasse e dialogasse com a obra de Lelé.; Optou pela parede de vidro para manter a visão do jardim.

Ângela ainda se impressiona com a genialidade do arquiteto. O teto verde é original e, no período da construção da casa, ninguém fazia isso. Hoje, arquitetos do mundo inteiro debatem sobre a funcionalidade desse recurso para refrescar ambientes. ;Ele serve para trazer conforto térmico e deixar os ambientes mais agradáveis. São preocupações muito atuais, mas ele já tinha naquela época;, destaca.

A profissional comenta que foi uma responsabilidade muito grande alterar, mesmo que minimamente, uma obra de autoria de um ícone da arquitetura modernista brasileira e brasiliense. Lelé é reconhecido internacionalmente e frequentemente os moradores abrem suas portas para receber estudantes de arquitetura de outros países que querem visitar e estudar o imóvel.

Confira a reportagem na íntegra na edição impressa, número 706, da Revista do Correio.

*Estagiária sob supervisão de Sibele Negromonte

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