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Enxergando as pessoas com autismo

O censo demográfico do próximo ano mapeará, pela primeira vez, a população com transtorno do espectro autista. Conheça a história de famílias que lidam diariamente com tal diversidade

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 01/09/2019 04:10
Com ouvido absoluto, Daniel se comunica, principalmente por meio da música, com a mãe, Hedrienny, e a irmã, Júlia

Existem muitos mistérios que cercam o funcionamento da mente humana. Ainda se sabe pouco sobre o cérebro e as condições atípicas de atividade do órgão ; chamadas de neurodiversidades. O transtorno do espectro autista (TEA) é uma dessas maneiras diferentes de enxergar o mundo. Embora exista um longo caminho a percorrer, entender o autismo e suas particularidades é a melhor forma de lidar com ele.

Um dos passos rumo à compreensão do quadro é definir a quanto corresponde a parcela da população que tem autismo. Estima-se que 70 milhões de pessoas contem com algum nível de TEA no mundo ; e destes, 2 milhões sejam brasileiros. No entanto, especialistas na área acreditam que o número seja bem maior.

No último mês de julho, foi aprovada a Lei n; 13.861, que visa incluir especificidades inerentes ao autismo nos censos demográficos. O resultado disso é que, a partir de 2020, informações sobre a quantidade e a condição socioeconômica das pessoas com espectro autista estarão disponíveis.

O intuito da inclusão desses dados é que sejam elaboradas políticas públicas que garantam aos autistas o pleno exercício da cidadania. ;Não existem adaptações na educação, na saúde ou na assistência social. Essa omissão do Estado, sem dúvidas, se dá pela inexistência de dados oficiais sobre o autismo;, defende a deputada Federal Carmen Zanotto (Cidadania/SC), responsável pela iniciativa do projeto.

Fabiana Andrade, psicóloga e mestre em ciências do comportamento, pondera que a falta de informação dificulta o acesso à intervenção de uma parcela da população significativa. ;Quando se tem esse tipo de dado, a sociedade se prepara e enxerga as pessoas com TEA de forma inclusiva. Essas pessoas existem, precisam ser contadas e atendidas de acordo com as suas características específicas;, afirma.

Enxergando com as mãozinhas

Medidas como essa auxiliarão no desenvolvimento de adultos e crianças como Daniel Santos, 7 anos, que precisa de atendimento especializado. O mundo dele é bastante particular. O menino nasceu com deficiência visual e também foi diagnosticado com autismo aos 3 anos. Daniel tem características especiais por conta do transtorno. Demanda grande por estímulos sonoros, sensibilidade severa ao tato e apego à rotina são algumas delas.

Durante muito tempo, ficar sentado para se concentrar e aprender era algo impossível para Daniel. A a sensibilidade a cores e texturas também representava um entrave ao desenvolvimento do garoto. Algumas coisas que tocava causavam nele uma repulsa tremenda. ;Imagine para uma criança deficiente visual, que tem de aprender a ver o mundo com o tato e a ler em braille, o que é ter repulsa em encostar nas coisas?;, questiona Hedrienny Santos, mãe dele.

Conseguir acessá-lo e retirar algumas dificuldades que tinha só foi possível graças à música. O caso de Daniel é caracterizado pela busca contínua de estímulos sonoros. Saber que o barulho do micro-ondas de casa é um lá sustenido, ou que a buzina do carro do pai emite a nota si é uma habilidade que o garoto tem desde que nasceu. A audição dele não identifica apenas sons, mas notas musicais.

Considerado ouvido absoluto ; fenômeno auditivo que caracteriza a habilidade de uma pessoa identificar ou recriar uma nota musical sem ter o tom de referência ;, Daniel consegue reproduzir músicas e grandes sinfonias no piano apenas após ouvi-las.

Ajudas preciosas

Aprender a enxergar como o garoto permitiu que a família se conectasse com ele. Para tanto, eles contaram com a ajuda de uma professora especializada da rede pública de ensino. ;Encontrar alguém que acreditou no meu filho e sabia como se comunicar com ele foi fundamental para o desenvolvimento do Daniel;, garante a goiana.

Com o acompanhamento da professora, que entende as particularidades do quadro e está aberta a testar métodos e técnicas especiais, o aprendizado de Daniel está cada vez mais desenvolvido; e as limitações, menores.

Júlia Santos, 5, também é um pilar importante para o crescimento do irmão. Assim como Daniel, a menina é deficiente visual, e, por anos, eles não tinham conexão nenhuma. Mas é quase impossível não se apaixonar pela doçura dela. Foi por conta da perseverança e do amor da irmã que os dois construíram uma amizade e parceria muito forte. ;Ela é minha coterapeuta;, diverte-se a mãe.

Hoje, Daniel lê em braille com facilidade, encanta a todos com as belíssimas sinfonias que toca no piano e conquista qualquer um com seu jeito de ser. ;Meus filhos me ensinam coisas novas todos os dias e me fazem querer ser uma mãe melhor. Eu tenho três experiências com a maternidade, totalmente diferentes: o Daniel, que é cego e autista, a Júlia, que é deficiente visual, mas tem as outras habilidades de uma criança típica, e o Pedro, que tem o desenvolvimento cerebral tradicional. Todos os dias, eu preciso aprender e me reinventar, mas é muito gratificante ver cada avanço que eles vão alcançando e participar desse processo de desenvolvimento;, diz Hedrienny.

*Estagiária sob supervisão de Sibele Negromonte

Por dentro do transtorno

O que se sabe sobre o transtorno do espectro autista (TEA), segundo a Organização Mundial da Saúde, é que ele se refere a uma série de condições caracterizadas por um grau de comprometimento no trato social e em padrões de comportamento restritivos e repetitivos. A psicóloga Fabiana Andrade pontua que o transtorno ;descreve um cérebro que funciona diferente ; alguns com atraso e outros com graus mais leves de comprometimento;.

A especialista explica que a causa da formação cerebral diferente ainda é incerta. Sabe-se hoje que 80% dos casos estão relacionados a fatores genéticos associados a parentes próximos, e 20% a familiares mais distantes. De 1% a 3% das crianças que nascem com autismo têm alguma relação com fatores ambientais antes do nascimento ; por exemplo, remédios ou algum tipo de acidente.

Todos os casos, porém, antes do nascimento. Por ser uma característica de funcionamento cerebral, não é possível adquirir o autismo ao longo da vida, a pessoa nasce com ele. De acordo com Letícia Gentil, psiquiatra da infância e adolescência, em alguns casos, a família pode perceber sinais desde os primeiros dias de vida: pouco contato visual, atraso no desenvolvimento da linguagem e alterações na socialização da criança.

Após perceber diferenças no comportamento dos pequenos, é importante procurar um especialista. Ele será responsável pela avaliação que auxilia na determinação das necessidades de cada paciente, de forma individualizada, para, então, determinar as terapias aplicadas.

O diagnóstico é quatro vezes mais frequente no sexo masculino do que no feminino, e as particularidades existem de forma significativa nos diferentes níveis do espectro. Cada autista tem sua singularidade; por isso, é tão difícil delimitar uma maneira de acompanhamento ou de educação para o aluno. Eles reagem de maneira diversa à comunicação, aos novos ensinamentos e aos tipos de interação.


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