postado em 29/09/2019 04:19
Quantas garotas não cresceram ouvindo que videogames eram coisa de menino e que elas não podiam brincar com determinados jogos? Os tempos, felizmente, mudaram. Com muita luta, as mulheres têm conquistado o merecido espaço em todas as áreas, e isso inclui o mundo dos games. Com o crescimento do número de streamers, jogadoras, programadoras e designers de jogos, elas estão assumindo posições de protagonismo em um espaço ainda considerado masculino.
A Pesquisa Games Brasil 2019, realizada pela Sioux Group, Blend e pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), mostra que as mulheres já formam 53% do público gamer no Brasil. O dado inclui todos os tipos de jogos, seja para computador e celular, seja para videogame, e confirma o que já tem sido observado na prática.
Apresentadora da UP Expo Game, uma das maiores feiras de games do Centro-Oeste, Anna Ryta afirma que a presença feminina tem crescido mais nas feiras e em todos os segmentos do mundo gamer. Renan Barreto, gerente-geral da Brasil Game Show (BGS), a maior feira do segmento da América Latina, afirma que, ao longo dos anos, houve um aumento expressivo da presença delas em todas as áreas ; tanto em campeonatos de e-sports quanto em lives e streams (leia glossário), programação, criação e design de jogos e até na ocupação de cargos executivos na indústria.
Para ele, o movimento é natural, conforme a sociedade evolui. ;O cenário feminino precisa de mais atenção, fazemos questão de colocar isso em pauta nos eventos, nos estandes. É necessário valorizar esse trabalho e incentivar as mulheres a jogarem e a terem visibilidade para que possam influenciar as meninas mais novas;, acredita Renan.
Hoje, as mulheres são cerca de 35% do público da BGS e, apesar de ter notado um aumento considerável desde a primeira feira, em 2009, Renan afirma que o intuito é que esse público continue a crescer. E há muito espaço para isso.
Vencendo o assédio
Luciana Simioni, 31 anos, streamer e freelancer, começou a trajetória no mundo gamer ainda muito cedo. Aos 13 anos, divertia-se com o famoso jogo de guerra Counter Strike em lan houses. Na infância e adolescência, viveu o início de uma paixão que viria a se tornar profissão. Nessas quase duas décadas, muita coisa mudou. Quando começou, a rede era interna, ela jogava com as pessoas que estavam na mesma lan house. Hoje, pode dividir, praticar ou competir com gente ao redor do mundo e transmitir isso para os seguidores.
Naquela época, a maioria do público ainda era masculino, mas, naquela idade, isso não fazia tanta diferença para Luciana. ;Era todo mundo criança, então a gente só queria brincar, e eu não tinha problemas por ser menina;, lembra. Aos 15 anos, quando ganhou o próprio computador, começou a jogar on-line ; os preferidos eram os jogos de RPG ; e o universo gamer passou a ocupar muito espaço na vida da adolescente.
Quando as streams começaram a se popularizar no Brasil, um amigo de Luciana comentou que ainda não via muitas brasileiras fazendo lives e a incentivou a ser uma das pioneiras. A jovem topou e fez a primeira live na casa desse amigo, há cerca de oito anos. Um ano depois, com computador e internet potente, a stream virou hábito.
Luciana lembra que existiam ela e mais duas mulheres que tinham um público grande e foi nesse contexto que ela sofreu com o machismo relacionado às transmissões dos jogos. Um youtuber já famoso na época costumava fazer ganks para outros streamers e disse a Luciana que não mandaria seus viewers para ela, pois a mesma não atendia a um certo padrão. ;Um dia, conversamos pela webcam, ele pediu para que eu abaixasse a câmera. Depois, percebi que ele queria ver meu corpo.;
Constrangida com a atitude, Luciana ficou ainda mais chocada quando ouviu que nunca cresceria no meio se continuasse se vestindo ;assim;, ou seja, sem decotes, maquiagem ou roupas provocantes para ;atrair; o público masculino. Passado o choque inicial, ela lembra que enfrentou o youtuber e disse que preferia passar dificuldades para crescer do que ter que se submeter a esse tipo de assédio. Aos poucos, o público foi crescendo, e ela se mudou para São Paulo para se profissionalizar na área.
Ela propôs um tipo de stream diferente para uma empresa e foi contratada para colocar o projeto em prática. Apesar do mérito, mais uma vez se viu vítima de machismo nas lives. O namorado de Luciana, conhecido no meio, trabalhava na mesma empresa. Isso foi o bastante para que ela tivesse a contratação questionada. ;Eu tinha lives com mais de 5 mil viewers, mas, ainda assim, ouvi que só estava ali porque namorava o cara.;
Dando a volta por cima
A empresa precisou colocar diversos moderadores nas lives de Luciana para banir os comentários tóxicos nos chats, mas os xingamentos continuavam. ;Comecei a desistir. Eu tinha crises de ansiedade antes das transmissões, e uma coisa que era positiva se tornou um sofrimento;, lembra.
Em 2016, Luciana desistiu das streams, se afastou do mundo gamer e voltou para Brasília. Os jogos voltaram a ser apenas um hobby. Foi somente em maio deste ano que Luciana resolveu que era hora de voltar para as lives. ;Hoje, sinto que tenho mais equilíbrio e força para lidar com essa exposição ; na época, eu não tinha.;
Além de preferir lives menores, nas quais mantém muita conversa com os seguidores, Luciana acredita que o fato de as mulheres estarem se apoiando mais e serem mais presentes no mundo gamer é uma das evoluções que deixam o ambiente menos tóxico. ;Estamos nos unindo, nos fortalecendo, incentivando umas às outras a ocupar esse espaço.;
Glossário
Entenda alguns termos usados habitualmente no universo game:
- Gamer ; É um termo que pode englobar qualquer pessoa que curte jogar, seja no computador, no videogame, seja no celular. É mais usado, no entanto, para definir as pessoas que vivem inseridas nesse universo.
- Stream ; É a transmissão de um conteúdo on-line em tempo real, é como são chamadas as transmissões que os jogadores fazem de suas partidas ou outras experiências.
- Live ; Sinônimo de stream.
- Streamer ; É o jogador que transmite seus jogos on-line e em tempo real. Ele também pode propagar outros tipos de conteúdo, como o chamado ;just chatting;, no qual interage com os seguidores.
- Viewers ; Pessoas que estão assistindo ao stream.
- Subscribers ; Pessoas que assistem às lives e são inscritos no canal de um streamer, muitas vezes dando apoio financeiro
- Gank ; Quando um streamer encerra a transmissão e envia os viewers para a live de outra pessoa ; normalmente uma pessoa com mais audiência ajuda uma com menos.