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Uma luta, várias frentes de batalha

Ser mulher em uma sociedade machista já não é fácil. Imagina quando se é negra e da periferia? Conheça um pouco do feminismo negro e como ativistas de Brasília o aplicam no dia a dia

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 10/11/2019 04:10
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Se, como disse Elza Soares, ;a carne negra é a mais barata do mercado; e ser mulher numa sociedade patriarcal é um desafio, estudos mostram que, na escala da opressão, as mulheres negras somam as duas posições. E precisam batalhar o dobro, o triplo, o quádruplo para provarem o próprio valor.

Segundo dados do Ministério da Saúde compilados pelo Atlas da Violência, lançado em junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 2017, sendo a maior parte das vítimas negra: 66%. A pesquisa também mostra que, em 10 anos, a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 8%, enquanto a de mulheres negras aumentou 15%.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, o Brasil tem a maior população de trabalhadores domésticos, a maioria mulheres, afrodescendentes e de baixa escolaridade. Para ativistas e estudiosos, como Jaqueline Fernandes de Souza Silva, 39 anos, especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça, estilista, produtora e gestora cultural, essa é ;uma das profissões que mais carregam os resquícios da escravidão brasileira;.

Era essa também a ocupação da mãe de Jaqueline pela maior parte da vida. Ela criou os filhos sozinha e, morando em um bairro periférico e com altos índices de criminalidade, acordava de madrugada e pegava ônibus lotados para trabalhar, sem direitos trabalhistas. ;Saía com medo do que pudesse acontecer com a gente, enquanto, às vezes, cuidava dos filhos de outras pessoas.; Sem oportunidade de estudar, lutou com tudo para mudar o rumo e o futuro dos seus. ;E essa é a história de muitas famílias negras que conhecemos;, orgulha-se Jaqueline. E de mulheres.

Especificidades

O feminismo negro surge à parte do feminismo hegemônico, historicamente incapaz de reconhecer as especificidades, os saberes, as trajetórias e as lutas das mulheres negras. ;Somos a maior parcela da população e, enquanto ser mulher negra no Brasil for fator determinante de desigualdades, enquanto nossas vozes não se fizerem ouvir dentro dos movimentos sociais hegemônicos, é importante, como disse a filósofa Sueli Carneiro, ;enegrecer o feminismo;. Ainda que muitas de nós tenhamos dificuldade em apenas se autodenominarem feministas ou feministas negras;, afirma Jaqueline.

E ela viu de perto inúmeros exemplos dessas especificidades: outras mulheres da família, vizinhas, amigas. O entendimento sobre as opressões de gênero e raça, no entanto, veio depois. ;O meu olhar crítico para o sistema foi despertado aos 13 anos, quando eu li o primeiro fanzine (publicação independente, geralmente produzida artesanalmente, fotocopiada e distribuída de forma gratuita por ativistas). Ele questionava a concentração de riquezas, e eu lembro que olhei para a minha realidade, para onde eu morava, para a história da minha família, e muitas fichas caíram;, recorda-se.

Primeiro, aproximou-se do movimento anarco-punk. Foi quando se tornou ativista. Mas, apenas quando se aproximou da cultura do hip-hop, se reconheceu negra e compreendeu como ;raça e gênero estruturam e determinam desigualdades;.

;Só aí acessei os movimentos negros e de mulheres negras e entendi o significado de empoderamento. Eles me mostraram meus verdadeiros heróis e heroínas ; pessoas comuns, lutando contra o racismo e todas as formas de discriminação. Nós, negras e negros, temos a nossa história e memória negados em um nível tão alto que, veja: em uma favela de Planaltina, nos anos 1990, com 13 anos, foi mais fácil saber sobre a existência de Bakunin, um filósofo, revolucionário anarquista, russo, do que de Zumbi dos Palmares, um herói brasileiro, ícone da resistência negra, libertador, líder do maior quilombo brasileiro;, critica.

Festival Latinidades

A luta de Jaqueline deu resultados práticos: a criação da primeira produtora cultural formalizada, fundada por mulheres negras e periféricas no DF, a Griô Produções; a atuação no Fórum de Mulheres Negras do DF; a atuação no Coletivo Pretas Candangas; a experiência de quatro anos como subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural da Secretaria de Cultura do DF; e a criação do Festival Latinidades, já existente há 12 anos.

;Quando surgiu a ideia do festival, tínhamos ; e ainda temos ; uma produção cultural afro-brasiliense riquíssima e pouco espaço para a circulação, a promoção e a divulgação dela. Não havia nenhum projeto de médio ou grande porte voltado para a cultura negra protagonizado por pessoas negras;, relembra.

O Latinidades celebra o Dia Internacional da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha, em 25 de julho, e dá visibilidade à população negra da capital. Em 2014, esteve presente a renomada filósofa e escritora norte-americana Angela Davis, um grande marco para o evento, mas não tanto para Jaqueline, que, envolvida com a logística do festival, não conseguiu assistir a nenhuma de suas conferências.

Mas, este ano, surgiu a oportunidade novamente. ;Foi uma mistura de sentimentos e emoções e, sobretudo, um aprendizado incrível ouvi-la falar. No palco, ao lado de Conceição Evaristo, elas relembraram que se conheceram no Latinidades. Eu fiquei ali sem piscar, de ouvidos atentos a cada palavra, a cada respiração. Ao final, tive o prazer de falar com ela por alguns minutos;, emociona-se.

* Estagiária sob supervisão de Sibele Negromonte

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