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Negritude valorizada de berço

O combate ao racismo deve vir desde a infância e passa pelo reconhecimento da contribuição negra na história brasileira e pelo fortalecimento da autoestima das crianças negras

Renata Rusky
postado em 24/11/2019 08:00
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A ancestralidade africana pode aparecer em diversos tons e traços, e só quem é negro sabe o quanto o processo de reconhecimento pode não ser tão simples. Crianças, muitas vezes, crescem sem se enxergar assim. A maioria vive na posição de pardas, de morenas, e com a autoestima baseada no padrão de beleza europeu ; que pode até ser exaltado pelas famílias ;, por conta da falta de representações negras desde a infância.

Para a psicóloga Jeane Tavares, a descoberta de ser negro é mais do que a constatação do óbvio. ;Saber-se negro é viver e reconhecer a experiência de ter sido massacrado em sua identidade, confundido em suas perspectivas, submetido a exigências, compelido a expectativas alienadas. Mas, sobretudo, é a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades;, afirma. Com isso, ela quer dizer que a negligência ao tema ;racismo; e à história da diáspora africana também contribui para o não reconhecimento.

O esforço para que as crianças se empoderem e se orgulhem da cor e dos traços que carregam passa por ensinamentos dentro de casa, por representatividade em brinquedos, em desenhos e livros, mas também pela escola e interações sociais vividas nela. A estudante de pedagogia Helena Rosa, 28, se dedica, atualmente, ao estudo das relações étnico-sociais. E espera poder fazer diferente do que foi feito com ela, com os alunos e com os filhos.

Sem representatividade

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Em casa, no início dos anos 1990, conta que os pais não tinham uma consciência racial aguçada, embora a tenham preparado para ser uma mulher forte e, assim, enfrentar todos os percalços pelos quais uma mulher negra costuma passar. ;Mas não era explícito sobre racismo;, conta. Os brinquedos e as bonecas que tinha eram todas brancas. Não havia outras opções no mercado. ;Na minha infância, eu brincava com a Barbie, branca, loira, de olhos azuis, magra. Era uma esquizofrenia.;

Na escola em que estudava, pública, as imagens dos livros didáticos também só mostravam pessoas brancas. Em 2003, houve um marco histórico na luta antirracista no Brasil e na transformação da política educacional e social brasileira: a Lei n; 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Mas, na opinião de estudiosos e de acordo com pesquisas, até hoje, isso não foi colocado em prática na maioria das instituições.

Segundo a pedagoga Liana Barcelos Porto, há profissionais que trabalham para que a lei não vire letra morta, no entanto, não é a regra. ;Com 16 anos depois dessa lei, temos a sensação de que vamos começar do zero a cada manhã, a cada conselho de classe, a cada jornada pedagógica, a cada aula;, conta. Uma das maiores críticas é a referência aos africanos que foram escravizados no Brasil como ;escravos; e não como ;pessoas escravizadas;. O primeiro termo naturalizaria a condição e a consideraria algo inerente àqueles seres humanos.

Uma situação marcou a trajetória escolar de Helena: ;Era uma apresentação do Dia da Consciência Negra, com uma música que eu não entendia direito, e me colocaram bem na frente. E meus pais assistiam e choravam. E eu achava que era de emoção;, relembra. Só depois de muito tempo, ela entendeu que interpretava uma escrava sem nem se dar conta. E a mãe contou que chorava de constrangimento. ;A construção do que era ser negra não era positiva;, conclui.

Com os futuros filhos e alunos, ela quer criar um ambiente de acolhimento. ;Quero que entendam a história de uma forma afrocentrada, quero desconstruir as imagens que recebemos e, principalmente, quero que conheçam suas histórias, seu heróis. Quero que a história para eles não seja contada a partir da escravidão, mas da África como um continente rico em cultura;, declara.

Para ler

Para a mestre em literatura Verônica Oliveira, os livros infantojuvenis ajudam as crianças, em geral, a construírem a própria identidade. ;Elas se colocam no lugar dos heróis e vivenciam as experiências dos personagens. Quando não se reconhecem nas histórias, costumam ter autorrejeição e sentimento de inferioridade;, afirma.

Segundo ela, a literatura foi uma das grandes responsáveis pela disseminação do racismo. Portanto, passa também pelos livros a desconstrução dele. Do ponto de vista educativo, algumas obras podem reforçar para as crianças brancas a ideologia da superioridade da sua raça, e para as negras podem fragmentar a autoestima.

A Revista do Correio fez uma seleção de livros infantis interessantes para todas as crianças e com protagonistas negros.

Princesas Negras, de Edeliuza Penha de Souza.
Da Editora Malê, especializada em literatura afrobrasileira com o objetivo de colaborar com a ampliação da diversidade do mercado editorial brasileiro

Minha mãe é negra sim, de Patrícia Maria de Souza Santana.
Uma indicação de Bernardo Clavelin

O que há de África em nós, de Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga.
Os personagens cruzam o Oceano Atlântico para contar sobre a história da presença africana no Brasil. São reveladas as relações entre o Brasil e as nações da África e as criações culturais de africanos e seus descendentes aqui.

A juventude que quebra barreiras

O combate ao racismo deve vir desde a infância e passa pelo reconhecimento da contribuição negra na história brasileira e pelo fortalecimento da autoestima das crianças negras

Bernardo Clavelin, 13 anos, a amiga Priscila Barreto, 13, e as duas primas dela, as irmãs Helena e Ana Luiza Barreto, 12 e 11, já tiveram a oportunidade de brincar com bonecos da cor deles ; embora Priscila nem se interessasse muito por tais brinquedos. As irmãs tinham Barbies loiras e negras. O menino não se esquece de um boneco que a mãe lhe deu e que ele apelidou de Obama, já que o ganhou bem na época em que os Estados Unidos elegiam o primeiro negro presidente. ;Era um boneco praiano, tinha uma toalha;, conta, aos risos.

Mesmo assim, vira e mexe, os adolescentes ainda ouvem alguém chamar o lápis rosa claro de ;cor de pele;. Eles não consertam as pessoas, se abstêm de chamar a atenção delas por tal racismo, mas não deixam de se incomodar.

Algumas situações são menos óbvias que essa, como a que Bernardo viveu. Um dia, esperando, do lado de fora da sala, a mãe terminar de dar aula em uma faculdade particular, um segurança lhe perguntou se ele era o garoto que vendia bala no semáforo. Respondeu que não, que a mãe dele era professora ali e ele a aguardava. O profissional apenas emitiu um grunhido desconfiado e foi embora. Depois, ao contar para a mãe o ocorrido, ela lhe explicou que aquilo havia sido racismo. ;Ela disse que o funcionário não teria vindo me perguntar aquilo se eu fosse branco;, relembra.

A mãe de Bernardo, Izabel Clavelin, jornalista, é muito envolvida com a militância negra e conta que sempre conversa sobre o tema com o filho. Fez questão de colocá-lo em uma escola em que houvesse vários colegas negros e que também abordasse o assunto com os alunos. ;Fico muito satisfeita em saber que não sou só eu que estou falando sobre isso em casa, mas a escola também. Até porque é o local de socialização dele e onde ele passa mais tempo;, afirma.

Para Renísia Cristina Garcia Filice, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e pós-doutora em sociologia, a escola pode reproduzir desigualdades, preconceitos e estigmas ou desconstruí-los com a intervenção do professor. ;Se tem uma preocupação com a transformação social, de uma perspectiva de cidadania, de inclusão, de respeito à diversidade e às diferenças e potenciais, a escola vai reconhecer a questão da diversidade racial, do racismo, e vai colocar isso em debate. Se não, não vai contribuir para a autoestima da criança negra;, afirma.

Na vida escolar, os amigos Bernardo, Priscila, Helena e Ana Luiza se sentem realmente acolhidos. Helena se lembra de uma aula de filosofia em que a professora citou um filme que mostrava o racismo. ;Era sobre um negro que não foi à polícia depois de uma coisa que aconteceu com a filha dele porque sabia que iam culpá-lo. E, depois, precisava de um advogado e escolheu um branco, porque não iam ouvir um advogado negro;, resume. A prima ajuda com alguns detalhes: ;Chegam até a ameaçar a família do advogado por defendê-lo;.

Todos muito interessados por esportes ; jogam futebol, vôlei e basquete ;, também se recordam de um longa a que assistiram na aula de educação física ;sobre um jogador de beisebol negro, numa época em que só brancos podiam jogar;, detalha Bernardo. Trata-se da biografia de Jackie Robinson, um grande ídolo do esporte nos Estados Unidos.

Izabel sempre fez questão de comprar livros com personagens negros para o filho. E um que Bernardo conta que gostava muito e que fez a mãe reler várias vezes foi Minha mãe é preta sim. ;Um menininho vai para a escola e a professora pede para ele desenhar a família dele. Quando ele vai pintar, ela fala para pintar de amarelo, e ele fica triste;, relembra. Amigas de Bernardo há cerca de 10 anos, Helena e Ana Luiza também já ganharam livros de Izabel. ;Tem um que era muito infantil e doamos recentemente, mas ainda temos outros;, conta Helena.

Cores de peles

Para Renísia Cristina, o debate sobre o ;lápis cor de pele; já deveria ter sido superado, mas, infelizmente, não foi. Segundo ela, todo o conjunto de representações negativas da população negra faz com que as crianças não se percebam como parte dessa etnia.

;Quando uma criança negra se pinta de rosa ou de branco, é muito grave, porque mostra que ela não tem uma representação positiva da população negra. Os livros didáticos ainda não passaram por uma ressignificação necessária sobre o conteúdo da história do Brasil, também recuperando a resistência negra. A história da África aparece só pós-colonial, e isso faz com que as crianças não se percebam;, afirma.

Segundo a educadora, já existe um rol grande de materiais paradidáticos de qualidade que desconstroem tudo isso. ;Mas ainda são exceções quem vão atrás deles. São profissionais que chamamos de gestores proativos;, lamenta.

Atualmente, várias marcas de materiais escolares contam com diversos tons de pele. No ano passado, a alemã Faber-Castell lançou a linha ;Caras e Cores;, com seis nudes diferentes. Em alguns sites, também é possível comprar uma caixa de giz de cera com 24 peles, da marca nacional Pintkor, em parceria com a Uniafro ; Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A Tris também já lançou a dela. É só ver qual cabe no seu bolso.

A mulher negra em poema

O combate ao racismo deve vir desde a infância e passa pelo reconhecimento da contribuição negra na história brasileira e pelo fortalecimento da autoestima das crianças negras

Maria Clara França, 17, precisava fazer um trabalho em grupo na escola, com tema livre, para a aula de literatura. Mesmo com uma maioria branca, todos concordaram em preparar um vídeo baseado no TedX da filósofa Djamila Ribeiro: Precisamos romper com os silêncios. ;Ela fala sobre como o silêncio é, historicamente, imposto às mulheres negras. O racismo é um dos assuntos que eu mais gosto de discutir e é muito bom poder usar minha voz para isso;, conta.

A jovem se aproximou do tema por conta do irmão mais velho, sempre muito engajado na questão racial. Ficou curiosa e passou a devorar livros a respeito. Um dos preferidos dela é O perigo de uma história única, de Chimamanda Ngozi. Diferentemente dos mais novos, ela conta que só foi ganhar uma boneca da cor dela quando já era mais velha e não brincava mais: ;Nunca tirei da caixa. Ficou de enfeite;.

Empreendedorismo racial

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A estudante de pedagogia Geisa Antunes, 26 anos, de Sorocaba, em São Paulo, acredita que já nasceu com uma veia empreendedora natural de quem é da periferia ;por necessidade, por sobrevivência;. Mas queria um negócio que transformasse a vida de pessoas. ;É muito bom a gente se sustentar com o nosso trabalho, mas melhor ainda saber que está fazendo o bem;, reflete. Nunca se viu representada em um brinquedo e só se reconheceu como mulher preta aos 16 anos. Não queria isso nem para a filha nem para outras crianças negras.

Estagiando em uma escola pública e em contato com garotos haitianos, viu uma situação: ;Um dia, numa brincadeira de sereia, disseram que uma haitiana não poderia ser a Ariel, porque ela era branca de cabelo ruivo. Isso me tocou muito. Eu a via sendo obrigada a comprar coisas que não a representavam;. Começou a fazer bonecas de pano negras e surgiu a Melanin. ;A criança tem que se ver representada e ver que ela pode ser o que ela quiser: a sereia, a bruxa, a princesa... A mídia não mostra isso para elas;, afirma.

Com uma filha de 5 anos, Ana Luísa, Geisa já tinha percebido esse furo no mercado. ;Minha filha queria uma boneca e queria uma pretinha, de cabelo crespo, e a gente não achava;, relembra. Depois das bonecas, vieram as mochilas, sucesso no Brasil inteiro, inclusive em Brasília, onde tem muitas clientes. Com personagens negras, todo o processo de criação da mochila é feito por ela. Só terceiriza a costura.

A garota-propaganda e inspiração de Geisa é a irmã, Ana Vitória, de 11 anos. ;Ela sofreu muito: fazia xixi na cama, só usava coque, por causa do cabelo crespo, fizeram música racista para ela;, lamenta. Para apoiá-la, todas as mulheres da família passaram a assumir os fios crespos e deixaram a chapinha de lado. Ana Vitória, diferente de Ana Luísa, tem a pele bem preta, e isso muda a forma como a tratam. É o chamado colorismo: quanto mais escuro o tom de pele de uma pessoa, mais racismo ela sofrerá, e quanto mais claro, mais privilégios ou vantagens ela terá. Geisa também tenta mostrar isso à filha.
O combate ao racismo deve vir desde a infância e passa pelo reconhecimento da contribuição negra na história brasileira e pelo fortalecimento da autoestima das crianças negras

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