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Escola bem brasileira

Designers da capital federal destacam a relação artística com os Irmãos Campana e a importância de um olhar para as nossas matrizes culturais

Correio Braziliense
postado em 26/01/2020 04:09
Humberto (E) com Fernando Campana:
Os Irmãos Campana, nascidos no interior de São Paulo, têm uma relação afetiva e estética com Brasília. Com três décadas de carreira completadas em 2019, eles se tornaram uma forte influência e referência para uma geração de artistas e designers da capital do país, uma cidade com forte apelo visual e com três ícones: Athos Bulcão, Oscar Niemeyer e Lucio Costa.

“Eles (os Campana) têm essa ideia de representar a cultura brasileira, de trazer a materialidade popular brasileira. Também agregam valor ao lixo, fazem isso há muito tempo, são vanguardistas. Hoje é mais comum, mas foram eles que lançaram e se tornaram uma referência do design mundial. Abriram um pouco esse caminho. É uma vitrine para a gente”, comenta a brasiliense Raquel Chaves, designer, pesquisadora e idealizadora do projeto Mapa Design Brasília.

Para Humberto, o artista tem que ter o olho de uma criança. E revela à Revista do Correio que sempre teve receio de se colocar como um criador. “Não me considerava uma pessoa apta para ser artista”, relembra, aos risos.

Além das questões estéticas, os Irmãos Campana instigaram o fortalecimento do movimento do design autoral no Brasil. Provocando reflexões com os trabalhos e unindo funcionalidade com peças conceituais, alçaram o design ao limite estético.

O começo

Um espelho de conchas foi o primeiro objeto desenvolvido pelo então advogado Humberto Campana, ainda quando morava em Itabuna (BA). Ao retornar para a capital paulista, o irmão, Fernando, designer e graduado em arquitetura, começou a dar funcionalidade para as esculturas de Humberto nos anos 1980. “Era o fim da ditadura e a gente queria fazer desenhos com as raízes brasileiras, enxergar o Brasil com o olhar da Lina Bo Bardi (arquiteta modernista ítalo-brasileira, responsável pelo projeto do Museu de Arte de São Paulo), o Brasil da imperfeição, da textura, da mistura de raças”, conta Humberto.

Desconfortáveis batizava a primeira exposição dos irmãos há 30 anos, em São Paulo, e apresentava sofás e cadeiras feitas de chapas de ferro, provocando a impressão não só de desconforto, mas de estranheza. Apesar do pouco sucesso da mostra, os dois davam ali o primeiro passo de um trabalho que é reconhecido como intrigante, inovador e que estabelece com o observador uma relação não convencional pautada na originalidade e na admiração.

Da mesma forma que Brasília, que no primeiro olhar surpreende pelas singularidades — endereços classificados por letras e números, espaços setorizados, um Eixo Monumental de construções de concreto branco e linhas curvas — e estabelece com os brasilienses e turistas um novo jeito de morar e se relacionar com o espaço urbano, os Irmãos Campana instituíram uma relação observador/consumidor que segue o mesmo caminho. Tirando o público da zona de conforto ao se deparar, por exemplo, com poltronas feitas de bonecas, bichos de pelúcia, corda ou plástico bolha, eles instigam as pessoas e as convidam a experimentar os objetos.

Hoje, além de parcerias com importantes marcas internacionais, como Fendi, Disney, Louis Vuitton e Lacoste, peças dos brasileiros estão expostas no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa) e no Pompidou, em Paris, por exemplo.

Longe da estética de escolas de design, como a italiana ou a escandinava, e com foco na reciclagem de materiais, produção artesanal dos objetos e ousadia, os irmãos estabeleceram uma nova gramática na concepção de produtos.

Pensar fora da caixinha

Eduardo Borém, hoje morando na Áustria, lembra o dilema entre largar a banda Móveis Coloniais de Acaju e seguir a carreira de designer. “Humberto me disse que tudo é criatividade. Ele me incentivou a olhar para o mundo criativo como uma coisa só”, conta Eduardo. Formado em desenho industrial pela Universidade de Brasília (UnB), o jovem estava diante de um impasse: seguir a carreira de músico ou de designer?

Passou alguns anos com a banda e, nos últimos seis anos, voltou ao design, mas sem deixar de lado esse caráter multidisciplinar e criativo dos projetos. “Não precisa estar dentro da caixinha. Pode ser design, música, fotografia, texto, poesia, artes visuais. A preocupação é se estou entregando um bom trabalho e se ele está adequado para a função que vai exercer”, explica.

Eduardo teve a oportunidade de atuar com os Irmãos Campana em dois momentos. O primeiro foi na montagem da exposição sobre o trabalho da dupla de designers em Brasília, em 2003, e o segundo, quando convidado para desenvolver a cenografia da mostra dos irmãos na Bienal de Lisboa. “Foi logo no início da carreira. Sou muito grato por ter experiências tão profundas e marcantes.

Do ponto de vista do trabalho, o designer entendeu com os Campana que poderia ir além da função de um determinado objeto e vê-lo em várias camadas. “Muitas vezes, a peça terá uma função muito mais de provocar uma discussão, de trazer o olhar para coisas que não são vistas. Essa talvez seja a grande contribuição dos Irmãos Campana para o design brasileiro, a função mais reflexiva”, avalia.

Assim como os paulistas, Eduardo tenta olhar para os materiais e expressar diferentes funções. “É uma forma de reflexão do que a gente pode pensar para o futuro também. Não há outra saída, não temos mais o privilégio de não pensar no futuro”, comenta, sobre a relação do design com a sustentabilidade.


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