Correio Braziliense
postado em 08/03/2020 04:09
Quem nunca ouviu que “mulher só se junta para fofocar”, que “mulheres se vestem para outras mulheres” e que a competição por homens, entre elas, é natural? Na realidade, ataques como esses não passam de desculpa para excluí-las e desvalorizá-las.
No livro O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, publicado em 2000, Bell Hooks escreveu: “Nós todas sabíamos que tínhamos sido socializadas como fêmeas, pelo pensamento patriarcal, para nos vermos como inferiores aos homens, para nos vermos sempre, e somente, em competição umas com as outras pela aprovação, para olhar sobre as outras com inveja, medo e ódio. O pensamento sexista nos fez julgar umas às outras sem compaixão e nos punirmos duramente.”
A professora Susane Rodrigues, do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), explica que a competição atribuída ao sexo feminino não é recente. “A ideia de que as mulheres são naturalmente mais fúteis começou na passagem da Antiguidade para a Idade Média, em que se passou a colocar sob suspeita todo e qualquer vínculo entre mulheres. Ganhou força a ideia de que elas competiam, principalmente, por homens, e por isso seriam incapazes de fidelidade e amizade verdadeira umas com as outras. Tais imagens causaram desconfiança e destruição desses laços.”
Em contrapartida à suposta rivalidade instintiva entre as mulheres, muitas se unem com o objetivo de se ajudarem, de evoluírem juntas e de colocar em prática um termo que anda muito na moda — embora tenha surgido na década de 1970, na terceira onda do feminismo: a sororidade. Soror, do latim, significa “irmã”.
De pronúncia enrolada, significa a aliança entre mulheres, baseada na empatia e no companheirismo. Para se ter noção, de 2009 a 2019, as buscas por sororidade na página do Google no Brasil cresceram 418 vezes.
Confira alguns exemplos de relacionamentos frutíferos entre mulheres e que mostram que, unidas, elas são muito mais fortes.
*Estagiária sob supervisão de José Carlos Vieira
Não é “mi-mi-mi”
Em círculos de conversas periódicas, todo tipo de assunto entra na roda. É momento de desridicularizar temas como a insegurança em relação ao corpo, relacionamentos frustrados, fases de mudanças e até a tensão pré-menstrual, que tanto tangenciam — e desfiam — o ser mulher.
Segundo a psicóloga Sâmia Simurro, vice-presidente da Associação Brasileira de Qualidade de Vida, quando mulheres estão exclusivamente entre mulheres, fora do campo da competição e da superficialidade, conseguem aprimorar sensibilidades e amadurecer o potencial que têm.
A especialista explica que esse pode ser um grande diferencial no meio profissional e quando elas atingem cargos de liderança. Mulheres que conversam com outras mulheres e ficam à vontade para partilhar de tudo conseguem lidar melhor com conflitos, ficam mais próximas de seus propósitos de vida - pessoal e profissional — e trilham caminhos mais fidedignos ao que desejam.
“Muitas vezes, mergulhadas no patriarcado, silenciamos chances de empoderar as mulheres, ao vermos aquela colega de trabalho como uma ameaça. Mesmo sem perceber, ainda estimulamos algumas desigualdades. Mas quando mulheres, em qualquer situação, passam a se respeitar mutuamente, quando escutamos umas às outras, a rivalidade se torna cada vez menos frequente”, acrescenta.
Na visão da professora Susane Rodrigues, do Departamento de História da UnB, não é por acaso que os movimentos feministas ainda são vistos, por vezes, de modo estigmatizado. “É justamente porque conseguem unir as mulheres em torno de valores únicos, que promovem nossa autoestima e um senso de comunidade, o que é uma ameaça.”
Espaço de fala e de escuta
“Chega uma hora que faz falta conversar, sem ter um dedo apontando para a gente, não é?” Antes de Eloia Moreira, de 56 anos, produtora de conteúdo, fundar um grupo de apoio a mulheres — onde pode, finalmente, conversar sem julgamentos —, enfrentou um divórcio e se distanciou do único filho, depois que ele casou. Na mesma época, Eloia adoeceu. Por causa do tratamento desgastante contra Hepatite C ao qual foi submetida, ela passava a maior parte do tempo em casa.
“Tudo isso poderia ser motivo para eu desanimar. Tanto que me vi perdendo várias amigas para a depressão.” Na época, à medida que amigas passavam na casa de Eloia, ela pôde observar algumas similaridades: mulheres que andavam inseguras, carentes, sentindo o pesar da síndrome do ninho vazio, algumas divorciadas.
A cada conversa, era um “clique” na cabeça: era preciso abraçá-las e estimular, em cada uma dessas mulheres, o que elas tinham de melhor, independentemente da idade. Assim, deu-se início às ações do Elas +, grupo feminino que já reúne 156 integrantes, a maioria entre 40 e 70 anos. Apesar de não terem um espaço físico fixo, se comunicam constantemente pelas redes sociais e, quando preciso, alugam algum espaço para realização de atividades diversas, como workshops.
Elas dividem receitas de pratos, dicas de organização financeira, tiram dúvidas sobre questões hormonais, fazem aromaterapia e até planejam idas ao sex shop. Para elas, é uma oportunidade de dar atenção àquilo que sempre ficava para depois, por causa da correria da vida. O objetivo principal é resgatar a autoestima. Eloia coloca o próprio exemplo à disposição. “Eu mesma fui casada por 25 anos e passei a maior parte desse tempo trabalhando. A gente acaba carregando alguns bloqueios durante a vida. Me incluo nessa.”
No fim deste mês, o grupo lançará um calendário em que as modelos serão elas próprias. Mulheres de 19 a 82 anos aparecerão nas páginas. O objetivo é resgatar a autoestima. “Nessa história do calendário, a graça é mostrar como elas realmente são.
Uma das integrantes, a Rose, tem um salão, então aproveitamos e fazemos maquiagem e cabelo lá. Caprichamos na roupa e pronto. Nisso, elas se veem como há tempos não se viam e se abrem.
Nesses encontros para a produção, descobri gente que havia sido machucada pelo marido e que precisava muito desse acolhimento real, falar e ter quem escute. Então significa muito.”
A renda da venda dos calendários tem finalidade social e será usada para apoiar duas empreendedoras iniciantes. Uma tem um pequeno quiosque de costura, a outra vende doces e precisa regularizar o negócio. Elas estão sempre segurando a mão uma da outra e se ajudando nos momentos em que mais precisam, da maneira que podem — um grupo com mulheres de perfis tão diferentes, mas que compartilham da vontade de se solidarizar.
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