Correio Braziliense
postado em 12/04/2020 04:35
Habilidades da quarentena
Esse isolamento tem despertado desejos íntimos de algumas pessoas. Sem ter mais o que fazer, um amigo decidiu que era hora de aproveitar a clausura para aprender o francês, um velho desejo; cabe dizer aqui que ele se considera um intelectual, escreve poesia, publica livros e perturba os companheiros de bar com seus rompantes literários. Com francês, não tenho dúvida, será pior. Très pire.
Outro velho amigo decidiu finalmente colocar seu primeiro livro no papel. Também não é modesto; disse outro dia que o objetivo é fazer o Grande Romance Brasileiro — as maiúsculas são por minha conta, mas a empáfia é dele mesmo. O problema, diz, é que, em casa, é chamado para apertar todos os parafusos que deixou desenroscar durante a vida.
E a mulher de outro amigo, profissional competente, que passou a vida lidando nas barras dos tribunais, decidiu que agora era hora de finalmente aprender a cozinhar. Nunca tinha se posto na frente de um fogão, nem para esquentar a água do café. Filha de gente bem de vida, sempre teve quem fizesse tudo por ela.
Tudo por causa da mãe, que acreditava que a filha tinha que vencer no mundo dos homens, trabalhando com eles, sem espaço para qualquer ocupação doméstica; não teve sequer aulas de etiqueta para aprender a se comportar em sociedade, como praticamente todas as amigas. Foi educada a ir às compras; e para isso precisava ter dinheiro.
Cresceu valorizando a independência pessoal, o que era ressaltada pela ausência paterna e a onipresença da mãe viúva, que vivia como pregava — empresária da área de confecções, cultivava empregados domésticos para todo tipo de serviço. Conseguiu o objetivo: ficou rica, independente, mas sabia quase nada da vida doméstica.
Tudo mudou no isolamento. Depois de ler um livro chamado Aprendiz de Cozinheiro, de Bob Spitz, ela começou a pesquisar páginas da internet, ver programas de culinária na TV com uma curiosidade que meu amigo não conhecia. Começou a ocupar o tempo na cozinha.
O ET que nos observa de longe sabe que hoje o mundo vive pela boca. A culinária assumiu uma posição bem diferente de poucas décadas atrás, com uma profusão de cursos, teorias, programas, debates; conversas sem fim sobre especiarias e sabores regionais, até que esse coronavírus expôs que não era salutar juntar um monte de bicho esquisito numa feira, todos vivos, para serem abatidos na frente do freguês.
Mulher de princípios, nossa personagem decidiu que era hora de partir para a prática. Escolheu um risoto; encomendou ingredientes de primeira entregues em casa, gravou o programa e fez o passo a passo do risoto ao lado do chef, com todas aquelas explicações que eles consideram relevantes, mas que soam como enrolação de vendedor de seguro. Fez tudo como na TV, sem improvisar.
Meu amigo abriu o vinho que ela recomendou, e o prato foi servido. Não estava de todo mau. Ele, educadamente, elogiou, mas de alguma maneira ela ficou frustrada, virou-se para ele e disse: — Pelo menos o cheiro é melhor do que o do chef.
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