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De Dom Bosco a Akhenaton: conheça o misticismo que cerca Brasília

Criada a partir de um sonho, a cidade tem elementos que refletem a fusão de lendas e a complexidade de crenças

Brasília tem uma história diferente da maioria das cidades: foi inventada. Inaugurada há 60 anos, atraiu gente de todas as partes do país. Para alguns, o resultado seria uma cidade com várias culturas misturadas, sem uma própria. Mas o que se vê hoje na capital do Brasil é uma identidade construída a partir das histórias e lendas que refletem em quem mora aqui.


O diplomata João Almino se recorda de, em Mossoró, no Rio Grande do Norte, acompanhar "a saga da construção e ouvir pelo rádio os discursos de sua inauguração". Para ele, a ideia de Brasília começou muito antes dos traços de Niemeyer e acompanhou toda a história do Brasil independente. "José Bonifácio, antes mesmo da independência, em 1821, sugeria 'Brasília' como um dos nomes possíveis da "cidade central no interior do Brasil para assento da Corte ou da Regência", e Machado de Assis, nosso maior escritor, sugeria, no século 19, a mudança da capital", conta.

Acima da função de centro do poder político, o que humaniza uma cidade é "a vivência de seus habitantes, com suas aspirações, seus dramas, suas paixões, desesperos e frustrações", afirma. Há quem aposte no misticismo da capital, cujo subsolo estaria repleto de cristais. Há também quem compare Brasília com Akhetaton, cidade conhecida atualmente como Tell El-Amarna, fundada no Antigo Egito há mais de 3 mil anos. Há quem brinque com lendas da Universidade de Brasília (UnB) e ainda quem invente uma mitologia brasiliense para fazer parte da cultura popular local.


Semelhanças com Akhetaton

Akhetaton era uma cidade do antigo Egito, construída, assim como Brasília, para ser centro político do país pelo faraó Akhenaton, nono rei da 13ª dinastia egípcia, antes chamado de Aménofis IV. No livro Brasília secreta — Enigma do Antigo Egito, a egiptóloga Iara Kern e o professor Ernani Figueira Pimentel comparam as duas capitais. 


Na parte arquitetônica, um dos aspectos mais explorados por estudiosos, entusiastas, místicos, numerólogos e espiritualistas é a enorme quantidade de pirâmides e formas triangulares encontradas em Brasília, o que demonstra, no mínimo, uma forte influência da antiga arquitetura egípcia no mundo atual.

A Ermida Dom Bosco, a pirâmide da CEB (atualmente demolida), a Torre de TV, o Templo da Boa Vontade são alguns exemplos nos quais se identifica o clássico formato piramidal. Já em outros prédios, as formas são mais sutis, mas não menos numerosas. O Teatro Nacional, a maior construção piramidal da cidade, é comparado à Grande Pirâmide de Kéops, e é um dos monumentos onde a cumeeira, ou seja, o ápice, não aparece. Esse tipo de construção era comum nas antigas civilizações: eram deixadas inacabadas, com o significado de que apenas Deus é completo. 

Nas comparações arquitetônicas, Iara e Ernani vão ainda mais longe: no livro Brasília Secreta lê-se: “Como no Antigo Egito quase tudo era subterrâneo, em Brasília muitos templos igrejas e edifícios são subterrâneos”. Essa tradição foi, apenas em parte, quebrada por Akhenaton. Em sua cidade, o faraó, crente no Deus Sol como deus único, criou o seu templo religioso mais importante aberto aos raios solares.

Ernani explica que a catedral segue o mesmo princípio. Apesar de ter a entrada por um túnel escuro, e possuir áreas subterrâneas ligando a cúria, a sacristia e o batistério, possuía, antes de sua revitalização, vidros transparentes, que permitiam a entrada dos raios solares. “No Egito, em toda a sua história, os templos eram construídos de maneira que a parte mais sagrada fosse subterrânea, todos os templos eram assim. Em Akhetaton, o templo era aberto ao Sol, contrário a todos os outros templos do Antigo Egito. E aqui, em Brasília, o templo é a Catedral. Ela é aberta ao Sol. Então, essas são semelhanças muito fortes”, completa o professor. 

Iara e o professor Ernani relacionam as 12 esculturas dos apóstolos na entrada da Catedral Metropolitana aos antigos deuses egípcios, que sempre eram representados em grandes esculturas nas entradas das construções religiosas do Egito.


A profecia de Dom Bosco

Para Almino, algumas histórias dão uma dimensão mística ao projeto de Brasília. “A profecia de Dom Bosco faz parte do universo simbólico que tem um caráter de permanência maior do que o da própria realidade. Na dimensão mística, Brasília também atraiu seitas que adicionam elementos de complexidade a seu caldo cultural”, explica.

O casal brasiliense Brisa Versiani, artista plástica e terapeuta holística, e Sérgio Lant-Tiger, mentor psicoterapeuta taoísta, reflete bastante essa aura da cidade. Mas deixam claro que, embora gostem do misticismo, eles o associam a rituais e espiritualidade, e não a figuras fantasiosas, como fadas e duendes.

A história sobre a profecia de Dom Bosco é uma das preferidas de Brisa. Acredita-se que a concepção da nova capital brasileira teria aparecido pela primeira vez em um sonho do padre italiano Giovanni Melchior Bosco. Em 30 de agosto de 1883, ele teria sonhado que seria construída uma cidade, descrita em sua biografia Memórias biográficas de São João Bosco, como “um leito muito largo e muito extenso, que partia de um ponto onde se formava um lago.”

Sérgio gosta, em especial, de saber que Lúcio Costa entregou o projeto da capital em cima da hora, sem pretensão de vencer. “É como se fosse o destino agindo”, afirma. Como o próprio arquiteto deixou claro: “Não pretendia competir e, na verdade, não concorro. Apenas me desvencilho de uma solução possível que não me foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta”.

Sérgio, ligado à filosofia holística, sempre procurou várias vertentes religiosas e se considerava ecumênico, mas se sentia sozinho nesse universo. “Brasília sempre me instigou muito, sempre tive um diálogo nesse sentido com a cidade, mas era só eu e ela. Não sabia como falar sobre isso com outras pessoas, nem tinha muita clareza do que a capital representava. Depois que comecei a pesquisar, descobri sobre a semelhança com Akhetaton, uma cidade do Egito Antigo, conheci gente e entrei no universo holístico, e fui ganhando consistência”, explica.

O casal teve uma empresa de turismo místico e holístico na capital. Na época, Sérgio trabalhava na Secretaria de Turismo. Ele diz que ficava cada dia mais fascinado pela cidade, mas sentia uma lacuna. Via um potencial nesse tipo de turismo, mas era pouco explorado.