Quer queira, quer não, a pandemia provocada pela Covid-19 aumentou o período de convivência para 24 horas por dia. E o que pode ser um desafio para alguns casais, também se mostra uma boa oportunidade de passar tempo de qualidade junto à pessoa amada. Mas como encontrar o equilíbrio e não saturar a relação?
Muito tem se especulado sobre os efeitos da quarentena nos âmbitos emocional e profissional, mas dados recentes divulgados pela China, primeiro país atingido pela pandemia, mostram que também é preciso estar atento às relações amorosas. Diversas cidades do país registraram recorde no número de pedidos de divórcio, com destaque para Xi'an, onde a média passou para 14 divórcios por dia.
A terapêuta de relacionamento e neurocouch Rosângela Matos aponta que é possível que o número de divórcios realmente cresça após a convivência em período integral, e pondera que a causa dificilmente se limita à nova situação decorrente do isolamento social.
O fato do isolamento ser inesperado e carregado de preocupações e medos externos pode fazer como que o casal associe a aproximação “forçada” a um sentimento ruim. Além disso, a alteração de comportamento que ocorre em período de isolamento — mudança significativa de personalidade e de humor e aumento dos sintomas de depressão, ansiedade, estresse, além de impaciência e raiva — somados à forma como o casal conduz a relação podem aumentar os níveis de conflito, desejos de separação e ressentimentos.
Rosangela Matos explica que o período traz à tona assuntos negligenciados. “O isolamento veio para mostrar o que estava debaixo do tapete, os problemas que estavam sendo negligenciados devido à rotina, ao trabalho. Aquela irritação, a discussão sobre pontos que incomodam vêm à tona, pois a convivência os obriga a isso e o resultado são mais brigas”, explica a terapêuta Rosangela Matos.
Buscando soluções
Mas mesmo quem experimenta conflitos anteriores ao isolamento, pode usar de estratégias para minimizar possíveis efeitos negativos. Intensos, Débora Teixeira Cardozo Baufaker, 21, e Tariqy Felipe Parreira Baufaker, 21 se conheceram por meio de uma aplicativo de relacionamento. Após dois meses conversando eles decidiram se encontrar e começaram a namorar no mesmo dia.
Na época, Débora estava indo passar um período na sua cidade natal, no Espírito Santo. "Passei três meses longe, quando voltei para Brasília continuamos juntos. Resolvemos nos casar após oito meses juntos. De lá para cá, são três anos”.
Ambos estudantes, compartilhavam muitas horas do dia estudando no mesmo ambiente. Ele, com as demandas da graduação em engenharia da computação, e ela se preparando para o vestibular de medicina. “Havia alguns conflitos entre nós, por não pensar igual em algumas situações e a rotina de estudos estressa a vida de dois jovens casados”, aponta Tariqy.
Com a restrição de circulação, a convivência que já era significativa se tornou integral e o casal passou a buscar atividades além do habitual para evitar que o relacionamento caísse na mesmice. Ao pensar em um forma de ajudar pessoas e ao mesmo tempo compensar as dificuldades financeiras vindas com a crise eles abriram a Boo Burguer, delivery de hambúrguer.
Ao abandonarem a rotina em frente ao computador, eles contam que começaram a olhar mais um para o outro e relembrar o porquê de terem se casado. “Acabamos enxergando que somos melhores trabalhando juntos, fazemos uma ótima dupla e isso tinha sido esquecido porque estávamos com foco em outras coisas. Mas agora, estamos crescendo cada dia mais juntos e torço para que só melhore”, conta Débora.
No entanto, mais do que criar novos hábitos e embarcar em projetos, o influenciador digital na área de relacionamento, Rafael Cobra, aponta que a boa vontade em conviver e compartilhar novos aspectos da rotina deve vir em primeiro lugar. Segundo ele, apesar de a maioria das pessoas considerar o tempo como maior ativo, tempo sem atenção não é nada, e por isso ambos precisam usar o tempo livre para exercitar dedicação e empatia um para com o outro.
Para o especialista, os compromissos do casal precisam se adequar à nova rotina a fim de diminuir as chances de conflito. “Um casamento é feito de acordos, e uma vez que esse acordo esteja feito, e um dos dois não fez sua parte, fica mais fácil de cobrar por isso. O ideal é conversar sempre. Mas da forma certa, falar sobre o fato ocorrido e não sobre a pessoa”, afirma o especialista.
Cobra aponta que é preciso exercitar a busca por conhecer e entender o outro para além da rotina. “O conhecimento e reconhecimento de fato de quem é que está ao nosso lado e se de fato está do nosso lado traz uma série de revelações sobre o outro que com as interferências do mundo externo fica difícil de ver e perceber. As distrações e anestesias maquiam muito o parceiro e a pior consequência é o relacionamento”.
E apesar de acabar descobrindo aspectos não tão agradáveis no parceiro, o outro deve ter cuidado ao fazer a crítica e a abordagem. Segundo o professor e psicólogo clínico Vitor Friary, a crítica pode aumentar o sofrimento e a dor, e as pessoas o fazem por acharem que por serem mais íntimas podem expressar facilmente o que quer.
Por isso, ele recomenda primeiramente cuidar de si mesmo e exercitar a compaixão, o perdão e a espera, de forma a controlar as expectativas e exercer a empatia sobre o outro . “Dessa maneira todos ganham, porque a pessoa é assertiva, deixa o julgamento de lado, e abre espaço para uma conversa sobre necessidades em vez de erros e fracassos do outro”, aponta Vitor.
O poder da meditação
A meditação é uma prática conhecida e utilizada para diversas finalidades: relaxar, dormir bem, sair de uma crise nervosa, entre outras. Nesse período de convivência intensa com familiares e isolamento dos demais núcleos sociais, ela pode ganhar ainda mais importância na sua rotina — e do seu (a) companheiro (a).
Segundo o psicólogo Vítor Friary, especializado no método mindfulness, um tipo de meditação que funciona para treinar a atenção da pessoa para repousar mais no presente momento, garantindo uma melhora no funcionamento cognitivo e uma diminuição significativa nos mecanismos que induzem à depressão e ansiedade — condições comuns nesse momento de pandemia.
Para cuidar de si mesmo e transformar uma crise em oportunidade, ele indica:
“Permita-se sentir o que quer que esteja surgindo em você. Diga para si mesmo: ‘tudo bem que eu esteja sentindo raiva e impaciência’. Quando você valida o que está sentindo, aquela emoção pode se dissipar mais facilmente e você fica pronto para um próximo momento”.
“Diariamente, coloque um cronômetro no celular marcando 15 minutos e medite por esse período, prestando atenção plena (mindfulness) na respiração. Quando a mente ficar ocupada, traga a atenção de volta à respiração. Isso ajuda a diminuir reatividade, criando um espaço de mais paz, resiliência e serenidade dentro de si”.
Algumas plataformas digitais oferecem meditações guiadas gratuitas e diversas instituições de mindfulness têm oferecido cursos e tratamentos com descontos, ou até gratuitos, para ajudar a população nesse momento difícil.
Outras recomendações são mexer o corpo, colocando algum vídeo de yoga ou dança (leia matéria nas páginas 14 e 15) para aumentar a produção de endorfina e a sensação de ânimo, disposição e bom humor no geral. Procure, também, fazer conexões, mesmo que virtuais, com outras pessoas como amigos, familiares de longe, etc.
Mestres do companheirismo
Para Luíza Dornas, 67, e Jorge Francisconi, 78, a convivência intensa não é tanta novidade. Após se aposentar da Secretaria de Estado de Cultura há alguns anos, ela passou a dividir com o marido o escritório em casa, onde se dedica à produção cultural, enquanto Jorge presta consultoria e produz artigos na área de planejamento urbano.
O casal, que está junto há 19 anos, sempre prezou pelo companheirismo para aproveitar os ambientes da casa, mesmo antes da pandemia do novo coronavírus e do isolamento social. “Curtimos ficar em casa. Gostamos de caminhar, fazemos exercício na piscina e ele até resolveu aprender a tocar piano”, revela.
O verdadeiro desafio tem sido a distância dos familiares e amigos. A única filha de Luíza mora no Canadá, para onde eles viajariam em abril, mas os planos foram adiados. A casa, que antes era um ponto de encontro de muitas reuniões, passou a comportar apenas os dois por tempo indeterminado.
A solução temporária para a saudade vem das ligações diárias que fazem. “Não sei como seria essa quarentena sem internet para poder falar e ver minha filha, com meus netos, amigos, irmãos, trocar receitas e aprender tudo o que preciso”.
Experimentar e aventurar-se nas receitas, inclusive, é um novo prazer para a dupla. No início do isolamento, eles dispensaram remuneradamente Carlinhos, que os ajudava com a casa e a cozinha, e passaram a comandar o fogão por tempo integral. Os resultados são deliciosos e chegaram a surpreendê-los.
Assim como a vida, os afazeres da casa também são divididos. “Eu e Francisconi cuidamos da casa. Eu cozinho e ele faz a sua parte varrendo, arrumando o quarto, nos cuidados com as compras que fazemos por whatsapp na Vargem Bonita, ou até na cozinha mesmo”.
O tempero para uma boa relação parece ser realmente o equilíbrio, uma vez que, ao anoitecer, o casal não abre mão do momento de sentar na varanda para descansar e conversar enquanto bebem um vinho — de garrafa previamente esterilizada, com água e sabão, para garantir distância do Covid-19.
Além disso, Luiza e Jorge costumam partilhar momentos de se informar e de lazer frente à televisão. “Assistimos ao jornal da noite para ver o que está acontecendo no mundo e desligamos ou vamos assistir a uma série no Netflix ou algum programa do canal Arte 1. Recentemente assistimos juntos ao show Roberto Carlos”, lembra ela.
Para quem faz parte do grupo de risco, o menor dos cuidados faz a diferença, assim como um ambiente de companheirismo, coopera para a boa convivência. Por isso, o casal não pretende sair do isolamento tão cedo, já que se sentem protegidos e unidos dentro de casa.
Sinal de alerta
Enquanto para uns o isolamento reconecta casais, para outros, é apenas um agravante do pesadelo. No primeiro trimestre de 2020 foram registrados 313 casos de violência doméstica no Distrito Federal, o que representa um aumento de 16,4% no número de casos em relação ao mesmo período de 2013. O crescimento somado à situação de isolamento imposta à sociedade em decorrência do Covid-19 acendeu o alerta quanto à segurança das mulheres.
Isso porque o isolamento pode agravar a violência doméstica ao "prender" a vítima no mesmo ambiente que seu agressor, assim como há crescimento dos fatores de riscos que contribuem para a violência — isolamento social da vítima, desemprego recente, dependência econômica, baixa disponibilidade de recursos e serviços para proteção e abuso de substâncias entorpecentes.
Outros agravantes como diminuição dos fatores de proteção, apoio familiar e da comunidade também são afetados, fazendo como que a vítima possa ter menos acesso a recursos e serviços para proteção, independência financeira e acolhimento profissional.
Pensando nessa vulnerabilidade, ações de proteção contra a violência doméstica estão intensificadas, a exemplo da Lei nº 6.539, sancionada pelo governador Ibaneis Rocha em 14 de abril, que obriga condomínios a denunciarem os casos de abusos cometidos contra mulheres e idosos, sob multa de R$ 10 mil para quem descumprir a lei.
Além de ações governamentais, diversas empresas particulares entraram na causa de enfrentamento ao problema, como o movimento #IsoladasSimSozinhasNão endossado pelas empresas Natura e Avon como forma de alertar a população para a importância da vigília social, e que busca criar uma rede de apoio entre vizinhos, amigos e familiares e dando-lhes informações e ferramentas para que saibam como agir diante de um caso de violência.
Os crimes de violência doméstica são amparado pela Lei nº 11.340/2006, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha. A recomendação das autoridades é acionar a polícia em casos flagrantes para que esta possa efetuar a prisão do agressor. Caso haja dúvida quanto a situação que vive, a mulher pode procurar informações pelo Disque 180, dos Direitos Humanos, ou pelo Centro de Atendimento à Mulher (Ceam), no número (61) 3207-6172.
Tempo de qualidade
Por outro lado, Juliana Araújo, 23, e Augusto Elias Teixeira, 28, viram no isolamento a possibilidade de passar um tempo de qualidade juntos. “Não vemos isso como um desafio, e sim como uma possibilidade única e bem legal de termos mais tempo juntos, considerando que, no dia a dia, geralmente, não temos essa chance para aproveitar devido ao trabalho e demais atividades que fazemos”, explica ele.
Casados e morando juntos desde 19 de março deste ano, o engenheiro civil e a estagiária de engenharia civil preferem não determinar as atividades de cada um, mas, sim, partilhar os cuidados com a casa, em um esquema onde os dois fazem de tudo — e tem dado muito certo!
Além da rotina de manutenção do lar, eles costumam assistir a séries e passaram a meditar antes de dormir e praticar exercícios em casa juntos. “Acredito que as atividades de lazer feitas conjuntamente são uma ótima opção para manter a sanidade mental”, explica Juliana.
O casal aproveitou a nova situação para deixar de lado o hábito de sair para comer — pelo menos por um tempo — e implementaram uma nova atividade a dois: dividir a cozinha para preparar as refeições.
Todos esses cuidados visam manter um convívio prazeroso e respeitar o isolamento, que consideram necessário para minimizar os efeitos da transmissão. “Porém, não podemos esquecer que nem todos têm a possibilidade de se isolar sem algum efeito colateral. Por isso, teria que haver uma organização melhor das atividades em cada área para seu devido funcionamento sem paralisação total”, complementa o engenheiro.
Os recém-casados resumem o primeiro mês como um momento ótimo para os dois, de aprendizado sobre costumes diferentes e respeito dos espaços e opiniões, onde se conhece melhor a pessoa que escolheu para dividir a vida e as alegrias.
Comunicação não violenta
Técnica desenvolvida por Marshall Bertram Rosenberg é uma forma de expressar desejos e necessidade por meio de uma linguagem eficaz, empatia e compassiva
Observação: Ficar atento às ações, assuntos e posturas catalisadoras de discussão. Essa observação não deve ser apenas quanto ao outro, mas sobre si mesmo. Além disso, a análise deve atentar a fatos, e não em interpretações deles.
Sentimento: Ao analisar o que está causando conflito, perceba qual sentimento a ação gera em você: medo, angústia, incapacidade? Assim, você tira a responsabilidade do outro e olha para si, fazendo com que a conversa seja menos acusativa e mais resolutiva.
Necessidade: Ao detectar catalisadores e os sentimentos provocados por ele, é hora de pensar quais são os seus desejos diante da situação, de modo a pedir isso ao companheiro.
Pedido: O parceiro (a) deve comunicar o que espera do outro de forma leve. O tom e a forma de falar são importantes. É mais fácil conseguir a cooperação pedindo, do que mandando, que pode parecer uma maneira grosseira.
Exemplo prático: O parceiro se irrita ao encontrar a pia cheia de louça. Em vez de falar: “Você nunca me ajuda em nada” (acusação), pode falar: “Eu me sinto sobrecarregado (a) durante esses dias, você poderia me ajudar lavando a louça?” (pedido). Isso seria importante para mim”. Ou seja, apresentar um desejo, baseado no sentimento, tem maior chance de surtir efeito, do que baseado na acusação.
*Estagiárias sob supervisão de Taís Braga
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