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Cidade nossa

Correio Braziliense
postado em 24/05/2020 04:18


Perigos caseiros


Há poucos dias uma amiga decidiu fazer um bolo, o primeiro da vida, e por pouco não perdeu um dedo no liquidificador; outro conhecido, que sempre trabalhou atrás de uma escrivaninha, quase foi eletrocutado ao fazer um reparo no disjuntor. E ainda teve o radialista que, fazendo o programa de casa, esqueceu que tinha posto água para ferver e chegou perto de provocar um incêndio.

Nunca foi tão perigoso ficar em casa, desmentindo a propaganda que informa que o lar é local mais seguro nesta pandemia. O vírus pode não entrar, mas o tédio fez morada, o que aumenta o risco de acidentes.

Semana passada fiquei sabendo pelo Alexandre Garcia, jornalista que merece todo respeito e crédito, que os ortopedistas estão atônitos com o aumento do número de pessoas que precisam ter atendimento com o hálux (apelido chique do dedão do pé) luxado ou quebrado. É que as pessoas estão tropicando nos móveis da casa.

Mas não há como negar que essa pandemia tem sido educativa. Para começo de conversa, reativou o prefixo pan, que vem do grego pantós, e que expressa a ideia de todo, inteiro. Portanto, embora provoque medo, não tem nada a ver com o mitológico deus Pan, aquele com orelha, chifres e pés de bode, que assustou tanto os antigos helenos que deu origem à palavra pânico.

O distanciamento social veio para mostrar que a solidão pode ser uma virtude e que taxa de letalidade não tem nada a ver com tributos, ainda que estejam pela hora da morte. Também ficamos sabendo que o português é uma língua em extinção, porque não conseguimos nem mais traduzir lockdown por confinamento ou, vá lá, trancamento.  

Há também a novidade de conceitos curiosos, como o de curva achatada que se ouve a todo momento, sem que ninguém ache estranho. Talvez fosse melhor dizer – se o tradutor não fosse tão literal e apressado para verter flattening the curve – em suavizar a curva, torná-la menos fechada, portanto mais segura, como o mais barbeiro dos motoristas já sabe. Evitaria acidente e nos livraria de outro tipo de chateação.

Outro efeito é o surgimento de uma nova profissão: o especialista. Não se diz mais se o sujeito é o tal em alguma coisa — agora é um bambambam genérico, sem especificação. Como disse o escritor Bernard Shaw, o “especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos e no fim acaba sabendo tudo sobre nada”.

Pelo menos aprendemos que quarentena não precisa mais durar 40 dias como mandam a etimologia e a história, já que na época da peste negra, navios eram impedidos de atracar em Veneza antes deste tempo, até que se comprovasse que não traziam doenças. Já temos quarentena de 15 dias.

E ainda viramos incubadoras ambulantes. Anos atrás, o substantivo designava só uma chocadeira, onde se colocavam ovos que, sob o calor de uma lâmpada incandescente, viravam pintos. Hoje, sabemos que cada um dos 60 milhões de poros que temos na pele pode servir de porta para o coroado vírus entrar. É muita porta.





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