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Da dieta perfeita à super produtividade: existe regra no isolamento?

Pressão pela produtividade, mesmo diante das incertezas trazidas pela pandemia, esconde angústias e contribui para o surgimento de distúrbios emocionais

Correio Braziliense
postado em 25/05/2020 15:40
Gabrielle Rosa aposta no equilíbrio

Seja otimista, tenha um home office produtivo, faça exercícios, cuide da alimentação, aprenda um novo idioma... As orientações sobre como lidar com o isolamento social se iluminam como um letreiro impositivo em meio às ruas da internet, as únicas que se podem ser frequentadas em tempos de pandemia.

O problema é que, embora o objetivo seja ajudar, o excesso de conselhos e orientações vira uma faca de dois gumes. Enquanto alguns conseguem filtrar e aplicar apenas aquilo que lhe é possível, outros acabam pressionados e paralisados pela enxurrada de informação sobre como devem se comportar e encarar a nova realidade.

O psiquiatra Luan Diego Marques analisa que, no início do isolamento as pessoas passaram a pensar: “Tenho mais tempo”. Na verdade, houve apenas um deslocamento das obrigações sociais para dentro de casa. “Essa mudança de modelo acabou confundindo esse período com férias, onde as pessoas tendem a estabelecer metas, projetos e se cobrarem por resultados, tudo isso mascarando o sentimento de angústia que permeia todos nós”, diz.

Debatida entre especialista sob o termo “positividade tóxica”, o fenômeno se baseia em valores de meritocracia e poderes pessoais ilimitados e, de acordo como a psicóloga Érika Marakaba, é processo macro e social. “Há a expectativa que continuemos no mesmo grau de positividade e produção como se nada tivesse acontecido, sem saber do futuro, do amanhã, da segurança. Porém, com a perda de vários marcadores de rotina, a pressão por tirar algo da pandemia aumenta a autocobrança e autoculpabilização.

Apesar de se acentuar nos últimos meses, ele não surgiu com a pandemia e tem origem na estrutura social. A doutora em educação e mestre em sociologia Ana Bárbara da Silva Nascimento explica que, ao redor do mundo, as sociedades são regidas pelo trabalho, fato que explica a pressão em ser produtivo. “O trabalho não é não apenas um meio de sobrevivência. É realização pessoal e, principalmente,  definição de valor do indivíduo. O homem é o que ele produzir. Logo, como não se perder em um mundo onde esse parâmetro social se reformula tão rápido?”, questiona.

Seis perguntas para Érika Marakaba, psicóloga

 


O que é positividade tóxica?
É um conceito ainda em construção e que fala dessa pressão social para que a gente esteja positivo, otimista e motivado o tempo inteiro, com uma positividade inacabada.  Acho importante ressaltar que isso não quer dizer que toda positividade é tóxica ou que a luta, em si,  para se manter motivado, seja tóxica. São apenas os casos em que há uma expectativa para que sempre esteja tão bem a ponto de lhe deixar mal. É a autocobrança por positividade excessiva.

Acha que, de tanto se falar em ser produtivo durante o isolamento, há uma pressão para que se produza o tempo todo? Isso poderia ser uma espécie de produtividade tóxica?
A positividade tóxica tem uma pressão por produtividade dentro dela, porque, quando você está bem motivado, nem que sua motivação seja apenas mostrar no Instagram que está levando uma vida produtiva e feliz, há a pressão para ser produtivo.

Como ela atua em nossa realidade, principalmente em momentos delicados como esse de isolamento social?
Em tempos de quarentena fica ainda mais tóxica porque há uma expectativa para que a gente continue com o mesmo grau de positividade e produção, como se nada não tivesse acontecido. Sem saber do futuro, da segurança, você perde vários marcadores da sua rotina, mas permanece com o peso de ter que continuar sendo produtivo e tirar algo da pandemia. Isso aumenta a autocobrança e a autoculpabilização.

Quais são os perigos dessa positividade tóxica e da pressão para produtividade à mente das pessoas?
Você acredita que os outros estão muito bem, como se anunciam nas telas, e isso aumenta o sofrimento psíquico que pode levar até a síndrome do impostor, de que eu não sou feliz como me coloco nas mídias e não sou feliz como todo mundo é. A sensação é fracasso, comparação e competitividade por quem tá levando a vida mais significativa — porque não basta ser produtivo, tem que ter status, dinheiro e tem que estar feliz.

É importante aceitar que existem os momentos de tristeza, cansaço, estresse causados pelo isolamento e acolhê-los?
Sim. O acolhimento de todos os sentimentos é importante para termos intimidade com nossas emoções e manejo. Não é à toa que as pessoas têm adoecido tanto. A depressão é recorrente, muitas vezes, por causa dessa falta de manejo. Se a todo sinal de tristeza eu jogo para debaixo do tapete e finjo que não estou vendo, ela voltará com mais força. Aí você vai perceber que não sabe como lidar com ela, porque só interagia com os estímulos da alegria e da positividade.

Quais orientações você daria para quem deseja se livrar dessas pressões?
A pessoa pode observar que tipo de perfis tem dado qual tipo de sentimento para ela. Estamos falando de permitir os sentimentos e agora falamos em parar de seguir? Parece contraditório.
Diria que mais importante é o autoconhecimento, que dá a ela a sabedoria para distinguir o que faz bem e o que faz mal, e o que lhe acrescenta. Muito da positividade tóxica e da aceleração social que vivemos vem do excesso. Então, tentar reduzir os estímulos do concreto e das mídias já ajuda a focar em se perceber melhor.

 

Modelo

 

Entre tentar entrar em muitos projetos e não fazer nada, a solução óbvia mas que requer paciência para pôr em prática é encontrar equilíbrio. Mas, antes de qualquer ação, a psicóloga clínica Sirlene Ferreira recomenda ressignificar o que é produtividade. “Temos a falsa ideia de que ser produtivo é trabalhar muitas horas ao dia ou fazer um milhão de coisas quando, na verdade, é sobre saber gerenciar o tempo de forma a equilibrar as áreas de interesse com as de necessidade, obrigações diárias e momentos de lazer e distração, sem se sentir culpado por isso”.

 

Segundo, é preciso estabelecer uma rotina simples, em que estão presentes apenas o necessário e as prioridades. “Quando uma pessoa se perde na sobrecarga de informação é muitas vezes porque está seguindo os moldes de outra pessoa. Rotina e planejamento devem ser individuais para que sejam leves e fáceis de serem cumpridos. Assim, a pessoas chegam ao final do dia sem a sensação de dever para si mesmo”, aponta.

 

Levou tempo, mas quando a especialista em branding pessoal Gabrielle Rosa, 22 anos, entendeu a importância de ter prioridades e ser fiel ao pouco, muito da ansiedade que tinha melhorou. “Foi quando eu comecei a estudar sobre maternidade, e principalmente depois de ter meu filho e entender como a sequência de acontecimentos era crucial para a mente dele e para eu entender suas necessidades, que eu entendi como ter uma rotina bem estabelecida era importante pra mim”, conta.

 

Atualmente, ela trabalha com mentoria de mulheres empreendedoras na qual ajuda a encontrar um melhor posicionamento de marca nas redes sociais e ressalta que ensinar a elencar prioridades, traçar metas e se organizar é um dos pilares do seu método. “É importante compreender que a organização é um processo. Eu levei anos para ter a clareza que tenho hoje. Mas o importante é se propor a começar, a cumprir metas pequenas, ir criando o hábito e construir aos poucos”, recomenda.

Gabrielle investe em pequenas metas que ajudam na produtividade mais saudável

Em contato com pessoas de diferentes idades, locais e pensamentos, ela percebe que a falta de clareza e posicionamento é um dos fatores que mais leva as pessoas a se perderem nos conteúdos da internet e também dentro de seus compromissos, pois na falta de propósito e de rotina a pessoa vai encaixando a vida do outro dentro da dela.

 

Por isso, ela defende a seleção como uma das melhores formas de lidar como a pressão sobre formas de agir e se comportar diante da própria vida. “Quando eu seleciono o que eu consumo eu evito a obesidade mental de ter mil iniciativas e projetos mas não conseguir ou concluir nada daquilo a que me propus. A limpa nas redes sociais ajuda a seguir apenas pessoas como as quais se identifica e cuja rotina e valores são parecidos como os seus e podem de fato funcionar”, aponta.

 

Gabrielle acredita que os internautas estão se tornando cada vez mais críticos e conscientes e isso vem mudando a forma como se consomem esses conteúdos. “A rede social nada mais é que a nossa socialização. Na vida real é impossível encontrar alguém que é positivo o tempo todo, que consegue produzir muito ou que nunca tem problemas. As pessoas estão consumindo mais por conexão e mesmo pelo ideal”.

 

Relação de paz com a comida

 

Assim como a preocupação em se manter produtivo a todo momento, a busca pela dieta e rotina de exercícios perfeita parecem mais intensas durante o isolamento social. Essa angústia está, em parte, ligada ao temor de perder ou ganhar peso nesse período. Mas, será que realmente existe a dieta perfeita e que funcione para todos?

 

Na opinião da nutricionista Talita Reis, 31, e da psicóloga Caroline Elisa da Silva, 34, o caminho para fazer as pazes com o corpo e com a comida tem origem no autoconhecimento — e não em dietas com cardápios restritivos.

 

Juntas, elas construíram o programa Nutrimind — por uma relação de paz com seu corpo, com a comida e com você mesma — que une os conhecimentos da fisiologia com as relações emocionais, afetivas, ancestrais e culturais que o paciente desenvolve com a comida para buscar as raízes do comportamento alimentar e possíveis gatilhos. “Trabalhamos para identificar os gatilhos sabotadores que levariam ao retrocesso. Na proposta do autoconhecimento, a Carol ensina a trabalhar com esses gatilhos”, explica Talita.

 

Toda proposta é cocriada junto ao paciente e tem como pontos chaves, além do autoconhecimento, os sinais do corpo, a percepção de saciedade, das comidas nutritivas para a alma (vontades específicas) e para o corpo e a inclusão de novos grupos de alimentos que possam ajudar em demandas específicas, como controle de colesterol ou glicose.

 

Para as profissionais, não julgar a comida e o próprio corpo é uma importante habilidade a ser desenvolvida durante a jornada e que vai de encontro com muitas das preocupações e pressões do momento que vivemos. “Às vezes, tomar aquela vitamina vai te fazer reviver um momento, relembrar alguém da família, porque tem uma relação afetiva. Ficar contando essas calorias e levar em consideração apenas a parte fisiológica na quarentena é cruel. Tem chocolate que vai te dar um abraço e até que substitui presenças!”, afirma Carol.

Talita e Caroline

O ideal é compreender a ansiedade e os medos que a pandemia trouxe, respeitar e acolher os sinais e algumas vontades do corpo, buscando o equilíbrio e bem-estar. A psicóloga complementa dizendo que: “O momento da quarentena é de conexão consigo. Uma paciente estava se cobrando por não conseguir fazer exercício 3 vezes por semana como fazia antes. Reajustamos para 1 vez e isso abriu espaço para a gratidão e para enxergar que essa frequência era suficiente para se conectar com ela nesse momento de quarentena”

 

Talita esclarece que, assim como nossas emoções flutuam durante o dia, nossas vontades seguem a mesma regra e o que acontece com o peso não muito diferente. “Mas isso não é falado. Sempre vamos nos pesar com a expectativa de que esteja igual ou menor”.

Observe os sinais

Segundo as profissionais Talita e Carolione, nesse período nossas maiores questões podem aparecer. Por isso, é importante estar atento aos comportamentos que podem indicar o desenvolvimento de algum transtorno alimentar — quadro esse que necessita da orientação e acompanhamento de um profissional da saúde. Fique atento, entre esses sinais, estão:

 

  • Pesar-se com muita frequência — como se não estivesse autorizando seu corpo a ter mudanças que podem ser necessárias
  • Comparações com outras pessoas e corpos
  • Medo excessivo de engordar 
  • Pensamentos recorrentes sobre comida, como ir dormir pensando no que vai comer no dia seguinte
  • Fazer compensações do tipo comer um chocolate e pensar que precisa pegar pesado no exercício
  • Uso de diuréticos e laxantes porque comeu algo 
  • Evitar se olhar no espelho 
  • Contar calorias 
  • Evitar comprar o alimento que acredita não ter controle do consumo — para Carol, essa restrição é absurda e pode levar a problemas mais sérios

 

 

Talita, que já sofreu com a ortorexia, e Caroline, que já teve compulsão alimentar, esclarecem que muitos desses transtornos convergem na vontade de querer se encaixar em um padrão. Elas indicam que, se detectada, o primeiro passo é acolher essa nova realidade. “Tudo o que repelimos volta com mais força”, explica a psicóloga. O segundo, seria fazer uma limpeza em conteúdos que reforcem esses pontos. Depois, buscar ajuda de profissional especializado em transtornos alimentares e compreender que essa é uma jornada para encontrar a paz individual — e que as comparações só pioram o quadro.

 

A contadora Cristiane Ramalho, 25, percebeu que sua relação com a comida não ia bem e buscou ,na união da psicologia com a nutrição, um tratamento. “Caiu a ficha que não era somente sobre quanta fome eu sentia. Percebi que toda alegria, animação e o brilho dos meus olhos tinham desaparecido. Os sentimentos que estavam me acompanhando eram de tristeza, frustração, desespero e ansiedade incontrolável. A única área que sempre tive controle, que era a financeira, estava um desastre, gastava boa parte do meu dinheiro com comida”, lembra.

 

Ela classifica a relação que mantinha com o corpo, na época, como a mais tóxica e abusiva que já teve. O fato de ter o quadril largo e pernas grossas, fazia com que sentisse que destoava das amigas. “O ódio pelo meu corpo começou aos 14 anos, eu me achava gorda e queria a todo custo ser magra. Foram 11 anos de dietas restritivas, efeito sanfona, me exercitando na força do ódio, não sentia nenhum prazer em fazer atividades físicas”.

 

Cristiane conta que deixava de estudar em seu horário de almoço para ir à academia. Na época, ela conciliava seu primeiro emprego com a faculdade que fazia durante a noite e com toda pressão sobre seu corpo. “Eu ainda tinha que encontrar tempo para emagrecer, pois, meu corpo estava fora do padrão, então eu estava ficando feia perante a sociedade”.

 

Durante os cinco meses de tratamento, seus aprendizados mais libertadores foram saber amar o corpo do jeito que é e entender que não precisa ficar dando explicações se engordou, emagreceu ou sobre suas celulites — além da consciência de que nada pode definir ela ou qualquer outra mulher.

 

Hoje, a contadora explica que fez as pazes com seu corpo e que continua o aceitando no isolamento social. Ela também compartilha que têm se exercitado em casa, se alimentado de forma equilibrada e se permitido sentir as emoções e não comê-las. “Em tempos de pandemia com várias restrições e preocupações, será que é realmente necessário restringir a alimentação? Acho que o melhor caminho é trazer consciência e clareza para as nossas emoções”, afirma.

 

Ela finaliza dizendo que quando estabelecemos uma conexão verdadeira, garantimos a saúde da nossa mente e das emoções e nos libertamos de ter que pertencer a um padrão. “É possível ter uma relação de amor com o corpo e com a comida. É possível se desapegar desse relacionamento abusivo, entendendo sobre merecimento, e é possível viver bem e feliz comigo e com os outros”.

 %u201CEm tempos de pandemia com várias restrições e preocupações, será que é realmente necessário restringir a alimentação? Acho que o melhor caminho é trazer consciência e clareza para as nossas emoções%u201D, afirma Cristiane


 

Como ser gentil com o corpo


Marcela Kotait, nutricionista, explica que essa conexão com os sinais individuais de fome e saciedade é muito importante para estabelecer uma relação de gentileza com o corpo. “Quando entendemos esses sinais, começamos a fazer escolhas mais intuitivas e, geralmente, essas escolhas são mais saudáveis”.

Para ela, não existe uma alimentação correta, mas sim o entendimento que, em uma alimentação saudável, podemos ter todos os alimentos que existem, desde que entendamos nossas motivações para comer aliadas aos sinais do corpo. Comer com permissão não é comer com permissividade nem com proibição, é o meio termo.

Quando movimentamos o corpo pelo prazer que aquela atividade gera, e não por uma obrigatoriedade de cumprir o exercício diário, também estamos sendo mais respeitosos com ele. O ideal é encontrar uma atividade que goste de realizar e que te faça bem.

Kotait se diz defensora do unfollow positivo nas redes sociais e da procura por pessoas e perfis mais reais para evitar uma comparação idealizada. “É muito injusto se comprar ao outro, porque acabamos ignorando nossas questões mais pessoais, como nossa história, genética, família, construção do corpo. O ideal é, de fato, evitar esse tipo de comparação”, afirma.

A gentileza com o corpo é algo global e possível a partir de um ponto de vista mais amoroso. Nesse momento que deixamos de frequentar os ambientes que íamos e passamos a ficar mais confinados em casa, precisamos dar ainda mais atenção a ele. “Essa gentileza é desde organizar bem o seu local de home office, ter um horário adequado de sono, não pular nenhuma refeição e cuidar do seu corpo entendendo as novidades do momento e tentando honrar as sensações que ele gera”, esclarece Marcela.

Entender as eventuais mudanças também faz parte desse processo. “Tente respeitar os pequenos ganhos de peso ou pequenos emagrecimentos, porque o corpo está passando por uma rotina diferente. Devemos confiar e acreditar que, quando uma nova rotina vier, esse corpo também vai sofrer as novas adaptações”.

 

 

*Estagiárias sob supervisão de Taís Braga 

 

 

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