Correio Braziliense
postado em 14/06/2020 04:35
No tempo do major Quaresma, violão não era coisa de gente séria. Quando a vizinhança descobriu que ele estava aprendendo como colocar os dedos para formar o acorde em ré com o célebre artista Ricardo Coração dos Outros, logo exclamou: “Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!”.
Começou aí a fama de maluco de Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto, que defendia as modinhas como a mais genuína expressão da poesia nacional e, por tabela, o violão. Era um nacionalista extremado: frustrado por não conseguir servir ao exército, estudou a pátria de todas as maneiras para melhor amar seu país.
Chegava ao ponto de diminuir a extensão do rio Nilo em alguns quilômetros para favorecer o nosso Amazonas, se indignava quando alguém dizia que gostaria de conhecer a Europa e não admitia comer frango com petit-pois porque é culinária estrangeira. Mandava trocar por guando (espécie de leguminosa), para espanto da cozinheira, a irmã Adelaide.
A situação piorou quando, já subsecretário do ministro da guerra nos primeiros anos da República, fez um ofício na língua tupi. O escriturário Genelício culpou a mania de leitura de Quaresma. “Devia ser proibido — disse Genelício — a quem não possuísse um título acadêmico ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças”.
Quaresma foi além. Pediu que o Congresso Nacional decretasse o tupi-guarani como língua oficial brasileira, em substituição ao “emprestado” português. Foi parar no manicômio. “É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocado de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça”, escreveu Lima Barreto.
O fim de Policarpo Quaresma foi ainda mais triste, como adianta o título do livro. Por excesso de patriotismo, depois de tanta dedicação para defender o governo Floriano Peixoto, foi acusado de traição e condenado ao pelotão de fuzilamento.
Os autoproclamados patriotas de hoje estão mais para Genelício; bem menos românticos. Também odeiam livros, imprensa, não sabem conviver com opiniões diferentes, são brutamontes covardes e usam a bandeira do Brasil como valhacouto. E curiosamente estão em lados opostos. Não há um pingo de inocência nos atos cometidos por eles e, ao contrário do que Lima Barreto sentiu pelo personagem de seu livro, esses só merecem desprezo.
Patriotas verdadeiros de outros tempos narravam as belezas da terra que tem palmeiras, onde canta o sabiá, diziam que nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores. Diziam maravilhas da sua gente, do mulato inzoneiro, da terra boa e gostosa, da morena sestrosa de olhar indiscreto. A pátria em chuteiras se ufanava do — apesar do anglicismo — escrete nacional.
O patriotismo exacerbado esconde um certo cinismo, como pensava Bernard Shaw — “patriotismo é a convicção de que o país da gente é superior a todos os demais, simplesmente porque nascemos ali” —, mas pode ser também um sentimento virtuoso, como disse Joaquim Nabuco: “O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade”.
Esses “patriotas” deveriam saber do fim de Quaresma. Mas eles não leem.
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