Revista

Letras garrafais

Correio Braziliense
postado em 28/06/2020 04:20

O mundo perdeu muito de sua humanidade quando aposentou as letras garrafais. A luz do planeta se acendeu no fim da Idade Média, quando Guttemberg inventou os tipos móveis, pelos idos de 1450, o que deu na imprensa e, por consequência, na irremediável enxaqueca dos poderosos. Os tipos viraram tipões, mas a indignação que eles representavam vem sumindo.

De uns anos para cá, estamos imersos numa era em que nem as letras garrafais, nem os pontos de exclamação, têm mais vez. Provavelmente, porque ninguém mais se espanta com nada; as pessoas perderam a capacidade de se estupefar. Mas voltemos à primeira linha: onde andam as letras garrafais, aquelas que anunciavam tragédias, dramas, a vida em si?

Os jornais são agora um poço profundo de discrição, procuram apresentar tudo com uma sobriedade nobiliárquica, abandonaram o poder de fogo da exclamação, a eloquência do berro, representada pelas letras imensas que faziam as manchetes. 

Assim, o jornalismo deixou de se preocupar com os dramas comezinhos e com as histórias vicinais, provavelmente pela concorrência representada pelos escândalos políticos e financeiros. Uma briga de vizinhos rendia linhas inspiradas nos vespertinos, uma altercação no campeonato de várzea frutificava em parágrafos cheios de imaginação; e se houvesse um “presunto”, que era uma gíria para cadáver, o inferno era o limite. Acabou.

A indignação e a surpresa eram a motivação do jornalismo policial, hoje enterrado, e que assumia a forma direta — “Matou a cunhada a pauladas!” — ou mais misteriosa, que obrigava a leitura das linhas abaixo, o sutiã — “Um tiro fatal” trazia a manchete sem explicação. Outras eram quase um romance completo: “Enteado mata pai para ficar com a madrasta”.

Era um mundo perverso, sem dúvida, com atos quase sempre cruéis, que, narrados com detalhamento sórdido, mais do que informar, tinham a mesma função catártica das antigas tragédias gregas, que purificavam a plebe por meio do sofrimento alheio. As histórias eram peças shakespearianas sem polimento, sem frases marcantes e palavras bonitas. Traziam a vida sem freio.

O mundo continua perverso, os dramas continuam batendo na porta das delegacias, mas há hoje um consenso de moucos. E passamos a fingir uma cínica relação com o próximo, em que o mandamento número um é a famosa lei de murici, que diz que cada um cuida de si. E a mão foi invertida: a catarse foi para as ruas e virou o fato, e não mais o reflexo.

Como o pior do que a humanidade tem a nos oferecer não está mais estampado em letras que todos possam ler e, assim, conservar uma certa distância, ela brota em qualquer canto. As letras garrafais e as histórias que elas traziam foram abafados pelo crime sofisticado, que se limita aos pecados mais torpes, cerebrais.

Também foi aposentado um léxico rico. Não se ouve mais palavras como biltre, amásio, libertino, aleive, rameira, finório, proxeneta, calaceiro. Era um mundo mais rico, com nuances, em que só era preciso escolher o lado no campo de futebol. Não dá para imaginar um mundo melhor sem a volta das letras garrafais.
 

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