Correio Braziliense
postado em 12/07/2020 08:00
A pandemia virou de ponta-cabeça a vida de muita gente. De repente, não era seguro sair de casa nem mesmo para trabalhar. Receber pessoas para ajudar nos afazeres domésticos, também não. Encontrar os amigos e ter momentos de lazer com outras pessoas se tornou inviável. Diante de tudo isso, muitas pessoas se reinventaram. Por obrigação, distração ou prazer, usaram a crise como oportunidade. A chance de aprender algo que sempre quis, mas que nunca teve tempo, a necessidade de experimentar uma nova rotina dentro de casa ou arrumar algo que afastasse o tédio e trouxesse algum prazer.
Muitos se viram, assim, fazendo coisa novas. E o denominador comum entre eles é que não estavam sozinhos: tiveram um empurrãozinho externo. A distância, com desconhecidos na internet ou mesmo com o incentivo de um amigo, melhoraram o repertório de coisas das quais era capazes. “Eles transpuseram o isolamento, encontraram uma nova forma de se relacionar e se sentir menos sozinha neste momento”, analisa a psicóloga Luciana Moura.
Trio mestre-cuca
A pandemia do novo coronavírus deu à servidora pública Neide Teixeira, 50 anos, um novo prazer: o de cozinhar. Antes, ela e a família tinham uma funcionária, que preparava as refeições. “Quando tudo começou, eu pensei: agora, ou a gente morre de coronavírus ou de fome, porque eu não cozinho”, brinca. Ela garante que “não sabia nem fazer um arroz”.
Neide até se arriscava de vez em quando. Procurava receitas no YouTube ou na internet em geral. “Mas eu achava cansativo, demorado, pouco objetivo”, reclama. Além de o processo não ser prazeroso, o resultado não agradava aos filhos. Acabavam pedindo à mãe para evitar preparar comida. Preferiam pedir delivery.
Com a pandemia, não dava para depender sempre de restaurantes. Uma amiga de Neide, a pedagoga Jamila Dal-Ry, começou, então, a ajudá-la na missão de fazer refeições caseiras e gostosas para a família. No início, um arroz e coisas mais simples. Depois, até receitas elaboradas, como bolos e pães. “Agora, os meninos ficam dizendo: não quero mais que você volte a trabalhar fora, sua comida está maravilhosa”, orgulha-se Neide.
A servidora cita uma receita de tomate confitado como um dos grandes sucessos em casa. O sorvete é outro que já foi repetido diversas vezes, de tanto que a família gostou. “Parece que a gente valoriza mais quando é a gente que faz”, declara Neide, que só tem gratidão à amiga. “Em um momento tão difícil, de tanto sofrimento e dificuldade, apareceu um anjo, que é a Jamila, e a gente conseguir tirar uma coisa boa, uma alegria, um aprendizado.”
E Neide não é a única pessoas grata a Jamila. Com o boca a boca, ela passou a ensinar muito mais gente. Agora, já tem um grupo com mais de 250 integrantes. Entre eles, também está outra amiga, a designer de interiores Cristiane Freitas, 52. Ela conta que até sabia cozinhar, mas foi perdendo o hábito ao longo da correria do dia a dia. “Quando a pandemia começou e precisei voltar para a cozinha, vi que não tinha repertório suficiente”, conta.
Gratidão
O grupo de aprendizes formado por Jamila despertou o interesse de Cristiane em melhorar o que já sabia, e aprender mais. “Algumas coisas eu fazia intuitivamente, e acaba arriscando. Era uma roleta-russa: às vezes, dava muito certo; às vezes, muito errado.” A família toda notou a diferença. Elogia o gosto e também a variedade.
Uma das principais mudanças foi no sabor dos peixes. “Eu sempre fazia peixe, porque é saudável, mas ficava muito sem graça. Era uma dificuldade minha. Ela ensinou alguns pratos com pescado que passaram a ser uma opção de cardápio semanal: tilápia com molho de laranja e mostarda, peixe empanado, mas sem fritar, só no forno”, cita.
Tanto Cristiane quanto Neide têm a impressão de que a comida uniu a família e trouxe mais harmonia para as famílias delas. “Eu percebo, claramente, que é um momento de comunhão, porque quando a comida desperta sensações boas, desencadeia uma conversa prolongada à mesa, come-se mais devagar, e não correndo para se levantar logo. Aqui em casa, não existe mais chegar, pegar o prato, comer e sair”, alegra-se Cristiane.
O anjo da cozinha
Jamila não planejou começar a ensinar 250 pessoas a cozinhar. E, apesar de todas se dizerem extremamente gratas e darem retornos emocionantes, a “professora” é quem se sente gratificada. “Aqui em casa, estamos em um momento em que os filhos estão indo embora, então, tanto eu quanto meu marido ficamos meio perdidos. E isso está sendo muito bom para mim. As pessoas agradecem, mas eu sou muito grata, também.”
Tudo aconteceu naturalmente. No primeiro fim de semana de quarentena em casa, uma das amigas desabafou em um grupo do WhatsApp que estava pensando no que prepararia para o almoço, e brincou que “estava louca, e não sabia o que ia fazer na vida tendo que cozinhar todo dia”. Jamila comentou que faria um frango com molho de laranja, e as amigas pediram um vídeo ensinando.
Ela não é chef, e, sim, pedagoga, mas a culinária está na família. A mãe tinha um bufê. Como sempre gostou do ofício, Jamila começou, há alguns anos, a se aventurar nas panelas e a fazer diversos cursos de curta duração com chefs da cidade. Hoje, a família a incentiva na “nova empreitada”. O marido até quer lhe dar um celular novo para que ela consiga levar o conhecimento a muito mais gente e da melhor forma.
O primeiro vídeo de Jamila foi filmado pelo filho adolescente, e acabou enviado para bem mais do que só um grupo. Outros amigos interessaram-se. Mas ficar mandando separadamente para cada pessoa ficou difícil. Então, Jamila resolveu fazer um grupo só com os que queriam aprender. O alcance aumentou quando integrantes começaram a perguntar se poderiam encaminhar os vídeos para outras pessoas e até incluí-las na lista. De repente, o grupo estava lotado e tinha até desconhecidos de Jamila. Além dos vídeos das receitas, ela passou a fazer alguns em mercados, mostrando temperos e dando dicas.
O retorno tem sido, para a pedagoga, tão delicioso quanto as comidas que faz. “Tinha gente que não sabia o que era um fuê. Recebo mensagens de pessoas cujos maridos estavam depressivos, porque fechou o negócio com a pandemia, e que elas fizeram uma comida e viu o companheiro sorrir pela primeira vez em meses; de pessoas que não tinham coragem de pedir comida da rua e não sabiam o que fazer. E tem muita mulher que conta que cresceu ouvindo da mãe que não a queria na cozinha, porque era um trabalho desvalorizado, e que está cozinhando e descobrindo o valor disso”, relata Jamila.
Em casa, a pedagoga está mais motivada também. “A gente se ressignifica, porque quer mostrar mais, ensinar mais, testar mais coisas”, conta. “Eu já engordei 5kg e meu marido, 8kg”, diverte-se. Atualmente, o grupo está com a capacidade máxima de pessoas, e já há gente esperando para entrar, caso alguém desista. É tudo gratuito.
"Em um momento tão difícil, de tanto sofrimento e dificuldade, apareceu um anjo, que é a Jamila, e a gente conseguir tirar uma coisa boa, uma alegria, um aprendizado"
Neide Teixeira, servidora pública
Marcenaria a dois
Saciar uma vontade antiga de aprender marcenaria e, ao mesmo tempo, ajudar uma amiga. Foi isso que Lucas Farias Borges, 30, professor de educação física, fez nesta quarentena. Afastado do trabalho, por conta da pandemia, ficou muitos dias em casa sem fazer nada. Enquanto isso, a amiga Beatriz Miranda, 22, assistente comercial e estudante de arquitetura, havia acabado de se mudar para uma quitinete sem armários na cozinha.
A despensa de Beatriz eram caixas organizadoras, e o balcão, que divide a cozinha do resto do apartamento, ficava cheio de coisas em cima. “Acumulava muita poeira”, conta Lucas. “Não era tão higiênico”, complementa Beatriz. Lucas viu aquele problema da amiga como uma oportunidade: “Pensei: sempre quis, estou com tempo, tem uma situação, é agora”.
E assim surgiu a ideia de fazer um armário de cozinha para Beatriz. Mas deixou claro: “Não sou profissional”. Lucas abasteceu-se de ferramentas, e os dois compraram os materiais e colocaram a mão na massa. “Não tinha nem um parafuso aqui em casa”, brinca o professor. “Comprei furadeira, serra elétrica. Fiz esse investimento, que ficará para quando precisar instalar alguma coisa em casa, consertar alguma outra. Às vezes, a gente paga uma diária para alguém fazer três furos na parede.”
E a dupla se empolgou tanto que a ideia de fazer só um armário de cozinha se expandiu. Sobrou madeira e fizeram sapateira, aparador, pendurador de bolsas e casacos. Como estudante de arquitetura, Beatriz sempre teve curiosidade pela marcenaria, o que coincidiu com o desejo de Lucas. “Quando vinham fazer algum trabalho aqui em casa, sempre ficava observando para ver como era”, conta a jovem.
Tratamento contra a depressão
O aprendiz de marceneiro lembra que passou duas semanas vendo vídeos tutoriais e, só depois, colocou em prática. Ao comprar os materiais, conversou muito com os vendedores para tirar dúvidas e pegar dicas. O trabalho mais pesado, como o de cortar as peças de madeira, foi executado exclusivamente por ele, mas Beatriz ajudou em tudo.
Além de resolver o problema que tinha dentro de casa, Beatriz é grata ao amigo por ter lhe dado uma distração. “Ele me resgatou, eu não tinha ânimo para fazer nada. Foi muito importante descobrir tudo com o Lucas.” A estudante vinha de um processo depressivo, agravado com a pandemia. A marcenaria que o professor trouxe para a vida dos dois fez com que ela ocupasse a mente e se sentisse melhor. “Isso me serviu como um tratamento, foi uma terapia. Levantou-me, foi uma coisa que descobrimos que gostamos de fazer”, conta Beatriz.
Além de tudo, a iniciativa conectou Lucas e Beatriz a outras pessoas, que se inspiravam na dupla e tentavam, também, executar um trabalho de marcenaria. Muitas entravam em contato para tirar dúvidas e dar dicas. “Eu vi que nós influenciamos pessoas. Umas amigas começaram a fazer seus próprios móveis, conforme eu postava o nosso trabalho”, conta Beatriz. E também receberam sugestões. “Estávamos passando um produto com pincel e um conhecido mandou mensagem dizendo que tinha que ser com rolo. Testamos e ficou muito melhor”, relembra Lucas.
Bordando novas opções
O período de isolamento social foi crucial para a publicitária Victoria Franco, 24, aprimorar uma recente habilidade e interesse pessoal: o bordado. Sua primeira experiência com a técnica aconteceu no final de 2019, durante uma festa do pijama. “Uma de nossas amigas é supertalentosa e faz vários trabalhos manuais. Pensamos que ela poderia nos ajudar a bordar durante nosso encontro. Compramos tudo e ficamos um bom tempo bordando, começamos às 17h e fomos noite adentro.”
Desde então, Victoria passou a seguir, nas redes sociais, diversos perfis de bordado livre que faziam postagens sobre o trabalho manual. Porém, foi só durante a pandemia, quando precisou ficar em casa, que a atividade passou a ser praticada com frequência. “Eu gostava muito de ir pra rua, e não dá para bordar lá. Com o tempo em casa, comecei a sentar ao lado da minha mãe, e, enquanto ela fazia crochê, eu bordava. Foi um tempo em família”, explica.
Com o desenvolvimento da aptidão, a publicitária passou a ver mais tutoriais e a tentar novas modalidades da atividade. Nessa procura, descobriu os bordados de arco-íris em uma das contas que seguia. Ela achou que o item seria perfeito para presentear o bebê de uma amiga que ia nascer.
A ideia desse tutorial era utilizar restos de materiais, mas, como Victoria não tinha na quantidade necessária, comprou os itens em um armarinho e descobriu uma nova — e simples — paixão. “É mais fácil do que os bordados no tecido. A parte mais difícil são as medidas, porque não pode errar, mas, depois de cortar os barbantes, é super-rápido”. Ela compartilhou o resultado do primeiro arco-íris em seu perfil no Instagram (@viic.franco) e, do retorno que recebeu, surgiu outra iniciativa.
Diversas pessoas demonstraram interesse no item para decoração, inclusive, gente que não era tão próxima ou com quem Victoria não tinha contato havia bastante tempo. “Eu tinha várias linhas em casa e pessoas interessadas, então pensei em vender. No começo, meu objetivo era zerar o prejuízo da compra do material e continuar a produzir os arco-íris, mas o que eu faria com 300 deles em casa? Aí comecei a divulgar no Instagram”, conta.
Diversificando
Dessa divulgação outros pedidos surgiram, como um móbile de arco-íris. Esses novos projetos, apesar de mais complexos e desafiadores, deixam a jovem entusiasmada e geram mais ideias. “Também fiz uma flâmula com bordado para a filha do meu chefe — minha mãe fez a flâmula e eu bordei. Pretendo, ainda, dar bordados para amigos, já prometi alguns.”
Ela explica que o bordado virou uma verdadeira terapia durante a quarentena. “Você gasta muito tempo fazendo, mas é um trabalho manual que desestressa a cabeça. Às vezes, o mais difícil é escolher a cor, o ponto antes de começar, mas, durante a atividade, é relaxante.” Victoria afirma que até dorme melhor nos dias em que faz a atividade.
Para continuar aperfeiçoando a habilidade, ela já definiu alguns dos próximos itens que tentará desenvolver, como cactos de macramê, que encontrou durante suas pesquisas; camisetas com bordados, que serão presentes para uma amiga; e outros objetos que demonstram afeto em um período de distância.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
Arquivo Pessoal
Beatriz Miranda/Divulgação
Os amigos Lucas e Bruna e algumas das peças que os dois construíram para a quitinete dela: ocupação na quarentena
Arquivo Pessoal
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