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Habilidades descobertas na quarentena

Cozinhar, bordar, fazer móveis... Conheça a história de pessoas que aproveitaram o período em casa para se dedicar a uma atividade prazerosa

Correio Braziliense
postado em 12/07/2020 04:22
Jamila Dal-Ry (à frente) tem ensinado não só as amigas Neide Teixeira e Cristiane Freitas a cozinhar, mas também  um grande grupo de pessoas, via WhatsApp
A pandemia virou de ponta-cabeça a vida de muita gente. De repente, não era seguro sair de casa nem mesmo para trabalhar. Receber pessoas para ajudar nos afazeres domésticos, também não. Encontrar os amigos e ter momentos de lazer com outras pessoas se tornou inviável. Diante de tudo isso, muitas pessoas se reinventaram. Por obrigação, distração ou prazer, usaram a crise como oportunidade. A chance de aprender algo que sempre quis, mas que nunca teve tempo, a necessidade de experimentar uma nova rotina dentro de casa ou arrumar algo que afastasse o tédio e trouxesse algum prazer.

Muitos se viram, assim, fazendo coisa novas. E o denominador comum entre eles é que não estavam sozinhos: tiveram um empurrãozinho externo. A distância, com desconhecidos na internet ou mesmo com o incentivo de um amigo, melhoraram o repertório de coisas das quais era capazes. “Eles transpuseram o isolamento, encontraram uma nova forma de se relacionar e se sentir menos sozinha neste momento”, analisa a psicóloga Luciana Moura.

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte


Trio mestre-cuca

A pandemia do novo coronavírus deu à servidora pública Neide Teixeira, 50 anos, um novo prazer: o de cozinhar. Antes, ela e a família tinham uma funcionária, que preparava as refeições. “Quando tudo começou, eu pensei: agora, ou a gente morre de coronavírus ou de fome, porque eu não cozinho”, brinca. Ela garante que “não sabia nem fazer um arroz”.

Neide até se arriscava de vez em quando. Procurava receitas no YouTube ou na internet em geral. “Mas eu achava cansativo, demorado, pouco objetivo”, reclama. Além de o processo não ser prazeroso, o resultado não agradava aos filhos. Acabavam pedindo à mãe para evitar preparar comida. Preferiam pedir delivery.

Com a pandemia, não dava para depender sempre de restaurantes. Uma amiga de Neide, a pedagoga Jamila Dal-Ry, começou, então, a ajudá-la na missão de fazer refeições caseiras e gostosas para a família. No início, um arroz e coisas mais simples. Depois, até receitas elaboradas, como bolos e pães. “Agora, os meninos ficam dizendo: não quero mais que você volte a trabalhar fora, sua comida está maravilhosa”, orgulha-se Neide.

A servidora cita uma receita de tomate confitado como um dos grandes sucessos em casa. O sorvete é outro que já foi repetido diversas vezes, de tanto que a família gostou. “Parece que a gente valoriza mais quando é a gente que faz”, declara Neide, que só tem gratidão à amiga. “Em um momento tão difícil, de tanto sofrimento e dificuldade, apareceu um anjo, que é a Jamila, e a gente conseguir tirar uma coisa boa, uma alegria, um aprendizado.”

E Neide não é a única pessoas grata a Jamila. Com o boca a boca, ela passou a ensinar muito mais gente. Agora, já tem um grupo com mais de 250 integrantes. Entre eles, também está outra amiga, a designer de interiores Cristiane Freitas, 52. Ela conta que até sabia cozinhar, mas foi perdendo o hábito ao longo da correria do dia a dia. “Quando a pandemia começou e precisei voltar para a cozinha, vi que não tinha repertório suficiente”, conta.

Gratidão

O grupo de aprendizes formado por Jamila despertou o interesse de Cristiane em melhorar o que já sabia, e aprender mais. “Algumas coisas eu fazia intuitivamente, e acaba arriscando. Era uma roleta-russa: às vezes, dava muito certo; às vezes, muito errado.” A família toda notou a diferença. Elogia o gosto e também a variedade.

Uma das principais mudanças foi no sabor dos peixes. “Eu sempre fazia peixe, porque é saudável, mas ficava muito sem graça. Era uma dificuldade minha. Ela ensinou alguns pratos com pescado que passaram a ser uma opção de cardápio semanal: tilápia com molho de laranja e mostarda, peixe empanado, mas sem fritar, só no forno”, cita.

Tanto Cristiane quanto Neide têm a impressão de que a comida uniu a família e trouxe mais harmonia para as famílias delas. “Eu percebo, claramente, que é um momento de comunhão, porque quando a comida desperta sensações boas, desencadeia uma conversa prolongada à mesa, come-se mais devagar, e não correndo para se levantar logo. Aqui em casa, não existe mais chegar, pegar o prato, comer e sair”, alegra-se Cristiane.

O anjo da cozinha

Jamila não planejou começar a ensinar 250 pessoas a cozinhar. E, apesar de todas se dizerem extremamente gratas e darem retornos emocionantes, a “professora” é quem se sente gratificada. “Aqui em casa, estamos em um momento em que os filhos estão indo embora, então, tanto eu quanto meu marido ficamos meio perdidos. E isso está sendo muito bom para mim. As pessoas agradecem, mas eu sou muito grata, também.”

Tudo aconteceu naturalmente. No primeiro fim de semana de quarentena em casa, uma das amigas desabafou em um grupo do WhatsApp que estava pensando no que prepararia para o almoço, e brincou que “estava louca, e não sabia o que ia fazer na vida tendo que cozinhar todo dia”. Jamila comentou que faria um frango com molho de laranja, e as amigas pediram um vídeo ensinando.

Ela não é chef, e, sim, pedagoga, mas a culinária está na família. A mãe tinha um bufê. Como sempre gostou do ofício, Jamila começou, há alguns anos, a se aventurar nas panelas e a fazer diversos cursos de curta duração com chefs da cidade. Hoje, a família a incentiva na “nova empreitada”. O marido até quer lhe dar um celular novo para que ela consiga levar o conhecimento a muito mais gente e da melhor forma.

O primeiro vídeo de Jamila foi filmado pelo filho adolescente, e acabou enviado para bem mais do que só um grupo. Outros amigos interessaram-se. Mas ficar mandando separadamente para cada pessoa ficou difícil. Então, Jamila resolveu fazer um grupo só com os que queriam aprender. O alcance aumentou quando integrantes começaram a perguntar se poderiam encaminhar os vídeos para outras pessoas e até incluí-las na lista. De repente, o grupo estava lotado e tinha até desconhecidos de Jamila. Além dos vídeos das receitas, ela passou a fazer alguns em mercados, mostrando temperos e dando dicas.

O retorno tem sido, para a pedagoga, tão delicioso quanto as comidas que faz. “Tinha gente que não sabia o que era um fuê. Recebo mensagens de pessoas cujos maridos estavam depressivos, porque fechou o negócio com a pandemia, e que elas fizeram uma comida e viu o companheiro sorrir pela primeira vez em meses; de pessoas que não tinham coragem de pedir comida da rua e não sabiam o que fazer. E tem muita mulher que conta que cresceu ouvindo da mãe que não a queria na cozinha, porque era um trabalho desvalorizado, e que está cozinhando e descobrindo o valor disso”, relata Jamila.

Em casa, a pedagoga está mais motivada também. “A gente se ressignifica, porque quer mostrar mais, ensinar mais, testar mais coisas”, conta. “Eu já engordei 5kg e meu marido, 8kg”, diverte-se. Atualmente, o grupo está com a capacidade máxima de pessoas, e já há gente esperando para entrar, caso alguém desista. É tudo gratuito.

"Em um momento tão difícil, de tanto sofrimento e dificuldade, apareceu um anjo, que é a Jamila, e a gente conseguir tirar uma coisa boa, uma alegria, um aprendizado"
Neide Teixeira, servidora pública 


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