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Apropriação? Sandália Prada semelhante a modelos nordestinos acende debate

O lançamento da sandália de couro Prada, que é bastante parecida com os modelos confeccionados por artesão nordestinos, reacendeu o debate: qual é o limite entre a cópia e a inspiração?


Um item da coleção Pre Fall 2020 da grife italiana Prada tem chamado a atenção de muitos brasileiros. A sandália de couro, de valor próximo a R$ 4 mil, causou controvérsia por apresentar design parecido com os modelos confeccionados por artesãos locais e que são marca registrada da cultura do Nordeste do Brasil.

Para a professora Patrícia Fonseca, do curso de design de moda da FAAP, é possível ver semelhanças entre a sandália da Prada e os modelos confeccionados no Nordeste, principalmente pelo uso do couro trançado, mas as referências vão muito além. “As sandálias nordestinas de couro, assim como o modelo chamado priquitinha, que vários internautas dizem ter sido a inspiração da Prada, são semelhantes a modelos encontrados em comércios populares da Grécia. No sul da França, há as famosas trópeziennes, sandálias produzidas desde 1927 cuja estética poderia ser uma inspiração também.”

Patrícia acredita que, para falar em cópia, seria necessário provar que as sandálias vendidas nas feiras nordestinas são produtos criados sem influência de outras culturas. “Tirando o caso bem específico das belas sandálias feitas por Seu Espedito Seleiro, cujo desenho remonta à história da família do artesão e suas relações com o cangaço, nesses modelos mais populares, fica difícil traçar a origem identitária. Na verdade, a priquitinha lembra muito, também, as sandálias de pescador, como são chamadas na Europa. Ou seja, a inspiração para a Prada pode ser uma mistura de todos esses modelos.”

Já para Clarice Garcia, doutoranda do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Escola de Fashion and Textiles, o cenário não se trata de uma inspiração, mas, sim, de um caso de cópia e apropriação cultural. “As sandálias são absolutamente idênticas em termos de técnica, cor, proporção e materiais aplicados.”

Ela justifica que a apropriação cultural ocorre quando uma cultura dominante tira vantagens indevidas de um povo, colocando-o em situação de desvantagem. “Ocorre quando há subordinação de uma cultura em relação a outra e quando, portanto, não há o devido reconhecimento público das origens e dos valores simbólicos de determinado objeto, técnica, estética ou meio de produção. Não há a inserção e o reconhecimento de comunidades no devido processo de autoria, criação e monetização derivada da comercialização de produtos.”

Para Clarice, é necessário reverenciar a cultura de origem, reconhecer sua importância, seu contexto, integrar as comunidades no processo criativo e dividir os lucros da comercialização com seus integrantes para evitar a apropriação cultural.

Discussão importante

As discussões sobre inspiração, cópia e apropriação cultural são recorrentes na moda. Clarice explica que dois fatores que colaboram para a visibilidade dos debates é o acesso das pessoas à informação, além da possibilidade de identificar com rapidez e precisão as origens das cópias. Ela classifica como útil o debate sobre cópia no momento atual, em que somos assoberbados pela cultura de massa.

Os consumidores têm um papel fundamental nessa discussão. “De modo geral, eles também estão mais preocupados com a origem de seus produtos e com a dimensão política do que consomem. A indústria da moda ainda opera em valores pouco éticos. E precisa rever com urgência uma série de práticas danosas ao meio ambiente, às estruturas sociais ou às explorações culturais. O debate público, o boicote do consumidor e a imprensa são fundamentais para a coibição dessas práticas e para o surgimento de um novo miaste de consumo e de produção de moda.”

Patrícia também enxerga uma grande importância nessas questões que envolvem pesquisas históricas e sociais. “Muitas vezes, a apropriação é evidente, como no caso do colete que a Dior copiou da comunidade da região de Bihor, na Romênia. Achei interessante como a comunidade reagiu. Foi feita uma campanha internacional para que as pessoas comprassem o original, e deu certo! Isso ajudou a comunidade a manter suas artesãs, suas tradições.”

Há uma linha que distingue a cópia de uma referência e de uma inspiração, segundo Garcia. A inspiração é inerente ao processo criativo e ocorre quando um autor de um novo objeto de design se debruça sobre referências existentes na tentativa de compreendê-las e de adicionar seu próprio olhar e perspectiva ao que poderá originar. “Em moda ou design, é comum que a criação se constitua a partir de algo preexistente. No entanto, é a ressignificação do que existe pelo olhar e pela bagagem do próprio designer que torna o produto autoral.” Ela vê, também, como importante que o designer dê os devidos créditos aos responsáveis pelos objetos ou elementos usados como referência.

Outros casos

Para Patrícia, é comum grifes e estilistas estrangeiros se inspirarem naquilo que não é característico da própria cultura. Como a cultura brasileira é diversa e colorida para os padrões estrangeiros, ela gera interesse e acaba sendo referência em muitos casos – especialmente em coleções de verão.

A coleção primavera-verão 2011 de Jason Wu foi inspirada no trabalho da artista plástica Beatriz Milhazes e é um exemplo do uso das referências brasileiras. Tudo feito com autorização da artista. “A repercussão na época foi grande porque Wu bombava lá fora por conta da sua associação com Michele Obama. Ele era um dos designers favoritos dela. Naquele momento, tínhamos uma imagem excelente lá fora. Associar o trabalho da Milhazes à sua coleção era dar um toque de contemporaneidade, de ousadia de formas e cores. Éramos vistos assim naquela época”, diz Patrícia.

Wu baseou-se nas cores vibrantes das obras de Milhazes para criar as estampas e aplicações das peças. Além disso, os vestidos acinturados, as calças de cintura alta, os paletós e outros modelos traziam bordados, tecidos sobrepostos, transparências, contrastes entre as cores e desenhos de flores — outra inspiração que veio do trabalho da artista plástica carioca.

Outro exemplo — porém, desta vez, infeliz — são os biquínis de crochê de Maria Solange Ferrarini, artesã residente em Trancoso, que teve seus modelos copiados pela costureira turca Ipek Igit e vendidos nos Estados Unidos. “O caso foi muito documentado na imprensa estrangeira. Foram cópia descarada”, lembra a professora da FAAP.

Diversas atrizes e modelos famosas, inclusive, já foram flagradas usando o modelo copiado e vendido em grandes lojas norte-americanas. O biquíni virou alvo de disputa judicial entre Solange, que desenvolveu o design e os confecciona desde 1998, e a turca, que descobriu a peça de crochê durante férias no Brasil e passou a replicá-los.
 

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte