Revista

Transformando perdas em ganhos

Perder alguém querido representa uma dor imensurável, mas, felizmente, tem quem consiga fazer dela algo positivo e ressignificar a vida. Conheça alguns desses exemplos

Correio Braziliense
postado em 26/07/2020 04:18
Perder alguém querido representa uma dor imensurável, mas, felizmente, tem quem consiga fazer dela algo positivo e ressignificar a vida. Conheça alguns desses exemplos
Perder alguém nos coloca mais perto do óbvio da finitude, mas da qual pouco se fala. É tempo de viver o luto, de sofrer, de chorar e passar por todas as fases descritas por profissionais da saúde mental. É momento, também, de ressignificar a vida, adaptar-se à nova realidade, viver sem aquela pessoa. Como cada um passa por isso, varia – com ajuda psicológica e/ou psiquiátrica, focando no trabalho, com ações de solidariedade, colocando no papel o que viveu e o que sente.

As regras, explica a psicóloga Juliana Gebrim, são não tentar acelerar o processo do luto e não estacionar em uma das fases dele. “É preciso cumpri-las e não estacionar em nenhuma. Ter uma depressão e não superar, sentir raiva e não superar. Aí, configura-se o luto patológico, e a pessoa pode precisar até de um auxílio medicamentoso”, afirma.

A psicóloga clínica Elisa Leão, professora da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília e coordenadora do grupo de estudos e pesquisa psicossociais sobre desenvolvimento humano, acredita, no entanto, que o luto pode ser vivido em outras situações, que não a perda de alguém. “A gente usa a expressão para o tipo de sentimento que a pessoa tem em situações de separação, seja ela por falecimento, por divórcio, seja até pela morte de uma expectativa, de um plano.”

Depois de perder toda a família

Em dezembro deste ano, faz 10 anos do acidente que fez com que a professora Vânia Borges, 51, perdesse o marido, Jarismar, e os quatro filhos, Anna Beatriz, Júlia, Pedro e Rayran. Ela também estava na tragédia e ficou com 70% do corpo queimado e internada por três meses no Hospital Regional da Asa Norte.

No dia do acidente, ela tentou salvar as duas filhas, mas não conseguiu. Na ambulância, já sabia que as “havia devolvido a Deus”. Ali dentro, ao lado de Rayran, ela decidiu que escreveria um livro, e que ele se chamaria Pérolas no asfalto. A notícia da morte dos outros dois filhos e do marido, no entanto, só veio quando ela deixou o hospital. “No dia 17 de março de 2011, quando tive alta, eu fui para o apartamento dos meus pais para continuar o tratamento, e minha mãe me contou. Nós nos abraçamos, chorei, chorei e dormi. No dia seguinte, pedi força a Deus”, relembra.

Segundo Vânia, não existe superação para a perda que sofreu, mas ela diz que “a dor serenou”. Mesmo com um trauma encefálico grave, ela não perdeu a memória do acidente e, há seis anos, quatro depois da perda, lançou o livro sobre a experiência. Ela colocou no papel tudo o que viveu e sentiu, e admite que nunca conseguiu ler o resultado. “Foi uma catarse, para expurgar tudo que estava sentindo. Foi muito curativo”, ela conta.

Isso não significa, no entanto, que foi fácil. “Quando chegou à parte em que eu e o Rayran estávamos na ambulância, eu fiquei três meses sem digitar nada. Depois, com muito gás, eu continuei”, orgulha-se. Nesse trecho, Vânia conta que o filho pedia água e ela explicava que o garoto não podia tomar porque, se precisasse de uma cirurgia, tinha que estar em jejum. “O socorrista, muito comovido, pingou algumas gotinhas na boca dele”, recorda-se.

Especialmente depois do livro, mães ligavam para Vânia, em busca de um conforto, um consolo, para trocar sentimentos e alento. “Algumas já ligaram porque queriam tentar suicídio, outras estavam sem tomar banho havia semanas”, conta. Ela encontrou mais um sentido para a vida dela, além do trabalho como professora. Passou a auxiliar outras mães enlutadas. Entrou em um grupo de apoio com mais três mães, a Rede Api — Apoio a Perdas (I)rreparáveis. Tudo isso para enviar uma mensagem positiva para outras mulheres que também perderam filhos.

Vânia fez amizades, deu palestras e viajou. “Em 2018, fui chamada para palestrar em Portugal, fiz contatos que duram até hoje”, conta. Em 2016, voltou a morar na casa em que vivia com a família. Só no ano seguinte começou a encontrar amigos, recebê-los em casa. Antes disso, sentia-se culpada. “Mas, ainda, tem momentos em que eu choro, coloco as músicas que me lembram deles, pego o violão do meu marido, embora não saiba tocar”, relata.

Depois da publicação de diversas edições do Pérolas no Asfalto, Vânia acredita que a que está à venda, atualmente, será a última. O trabalho ajudando outras mãe, no entanto, não vai parar.


Serviço
O livro Pérolas no Asfalto pode 
ser comprado com Vânia.
Contato: 99993-8173


Homenagem por meio do trabalho

Vai fazer um ano que a designer de moda e estudante de engenharia Sofia Emi Maia Pinto Ishihara, 23, perdeu o pai. A morte foi repentina, inesperada. Uma queda causou uma fratura craniana, que levou a uma hemorragia cerebral. Justamente no Dia dos Pais. Ele ficou no hospital alguns dias, entrou em cirurgia, mas dormiu e não acordou mais. A dor ainda faz com que os olhos se encham de lágrimas e a voz tremule. “A impressão é de que o luto não passa. É como se nós fôssemos nos acostumando. Como se fosse um degradê.”

Sofia estava no último semestre de design de moda quando aconteceu a tragédia. As aulas haviam acabado de começar e ela precisava pensar no que faria como projeto final. Enquanto muitos teriam dado um tempo no curso, ela decidiu continuar. “Não foi uma decisão consciente. Não sei o que foi. Eu, simplesmente, decidi que ia fazer. Foi uma vontade de escrever sobre aquilo que eu estava sentindo, porque era muito forte e era uma mistura louca de sentimentos”, relembra.

Atrasou-se em alguns prazos, nos momentos de luto latente, mas correu atrás e, em seguida, reergueu-se. E o projeto final não podia ter mais a ver com tudo que ela estava sentindo. Como padrão, os estudantes devem desenvolver uma marca, desenhar uma coleção e confeccionar pelo menos quatro looks. A coleção foi toda baseada não só na experiência dela com a internação repentina do pai, a morte e o luto, mas em teorias acadêmicas sobre esse processo.

As peças traduziram todo o desespero do momento: a impotência, a esperança, a dor, o desamparo, a fragilidade, a tensão, a preocupação, a ansiedade, o cansaço e, claro, a vontade de chorar. Ela canalizou tudo isso no trabalho, e o resultado foi positivo, ainda que as emoções fossem pesadas.

Processo catártico

Ao escolher a experiência que vivia como tema, Sofia, ao mesmo tempo, distraía-se – quando escrevia sobre a sua marca, a Emi (do japonês, essência) – e processava a perda do pai. “Como eu comecei a fazer tudo logo depois do falecimento, nas partes mais emotivas, eu escrevia, chorava, eu escrevia, chorava. Colocava meu coração, então, teve essa coisa catártica”, conta sobre o processo.

A marca, por hora, está parada, até que Sofia termine a segunda graduação. Como engenheira de produção, ela acredita que fará a Emi evoluir muito, ainda. E que será uma grande memória do pai, ainda que ele, a princípio, não gostasse da ideia da filha fazer moda. Embora tenha sempre apoiado as escolhas dela.


Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags